Veredas de João Guimarães Rosa

O Cervantes do sertão

Caminhos. Foto: Fernanda Pompeu Caminhos. Foto: Fernanda Pompeu

João Guimarães Rosa, autor da obra-prima Grande Sertão Veredas, nasceu em 27 de junho 1908 na mineira Cordisburgo. Morreu em 19 de novembro de 1967 no Rio de Janeiro. Foi médico e diplomata. No entanto, é como jardineiro de palavras que ele é lembrado por nós.

Muito mais do que nonada (ninharia), Grande Sertão: Veredas tem mais de 60 anos de leitura útil. O livro é a reafirmação de que a matéria-prima da literatura são as palavras. Seu autor, João Guimarães Rosa foi um escritor de veredas da alma.

Maio de 1956, chegava às livrarias um livro comprido de páginas e de nome. Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Certo que nem livreiros, nem o editor e, talvez, nem o autor pressagiaram o sucesso que o livro alcançaria no Brasil e no mundo afora.

Não que o escritor fosse estreante, já havia brindado as letras brasileiras com Sagarana, publicado em 1946, e com Corpo de Baile, saído do prelo apenas 3 meses antes de Grande Sertão: Veredas.

O que Guimarães Rosa propunha, com este volume de mais de 400 páginas, sem divisão por capítulos, narrado por uma única voz – a do ex-jagunço Riobaldo – era um desafio para as vendas, uma vez que comercializar literatura nunca foi fácil na terra brasilis.

Quem leu o livro, conheceu o maravilhamento. Penetrou não apenas no sertão geográfico de Minas Gerais, mas, substancialmente, no grande sertão das histórias que contam os mistérios e paradoxos da alma humana. Quem avançou nas veredas de suas páginas, degustou o biscoito fino da alta literatura.

Aquela literatura, hoje rareada, na qual o como contar é tão importante quanto o que contar. Literatura sustentada por palavras pacientemente colhidas, por expressões semeadas pelas gerações a fio.

O russo Leon Tolstoi (1828-1910), autor do monumental Guerra e Paz, cunhou a verdade cristalina: Cante sua aldeia e ela será universal. João Guimarães Rosa, ao narrar as gentes, os bichos, o cerrado, os córregos das entranhas de Minas Gerais, universalizou o sertão.

Jardineiro fiel
Em sua vasta obra, João soube revolver a terra boa do vernáculo atrás dos melhores nutrientes para contar suas histórias. Criador de neologismos e restaurador de falares do povo, ia para o futuro da língua recuperando sentidos originais.

Rosa entendeu que o português, falado e escrito por nossa gente, é uma arca de tesouro. Ao romper o cadeado e abrir a tampa, o autor de Grande Sertão: Veredas encontrou a riqueza da diversidade. Tomou, em suas frases, as influências dos falares africanos e indígenas. Como veredas, essas influências irrigam a língua portuguesa do Brasil.

Em entrevista concedida ao crítico literário alemão Günter Lorenz, em 1965, Guimarães Rosa dá a entender que a língua é um ecossistema, no qual todas as formas de expressão (erudita, popular, regional, nacional) se interligam, se apoiam; dialogam.

“A língua e eu somos um casal de amantes.”

Para João Guimarães Rosa caberiam infinitas definições: escavador de tesouros lingüísticos, limpador de escombros, caçador de sentidos originais, pesquisador de todas as histórias, mestre-artesão de inventivas combinações, sacerdote da ave, palavra.

Vaqueiro ouvidor
Em 1952, Guimarães Rosa, acompanhando a condução de uma boiada, percorreu 240 quilômetros do sertão de Minas Gerais. Vestido a caráter, poderia passar por um vaqueiro típico, não fosse o lápis e o papel. Ao lado do chapéu e do berrante, havia seu caderno de anotações.

João Guimarães Rosa vestido de vaqueiro

Foto: Google

Nele, o escritor anotava histórias, lendas, casos. Registrava cacos de palavras, pedaços de expressões. Fazia listas de nomes e desnomes. Realizava o  trabalho dos verdadeiros escritores: recriar o vasto mundo por meio das letras. Ordenar, palavra após palavra, frase depois de frase, o caos da vida.

Nessa viagem, ele germinou ou mesmo culminou a escritura de Grande Sertão: Veredas. Certamente, inspiraram-no os vaqueiros e suas histórias, a fabulosa natureza do sertão e a incomensurável cultura da gente sertaneja. Mas sua maior inspiração brotava do seu ouvido gigante.

Não somos ingênuos, sabemos que não basta ouvir bem para escrever melhor. Há um estágio posterior, quando as palavras ouvidas precisam materializarem-se no papel. Neste momento, entra em cena o ofício e a arte do escritor.

“O que faço é trabalho, trabalho, trabalho.”

Estava certo, depois de escritas as histórias no caderno de anotações, ele continuava no processo de criação: trabalhando com o caos para alcançar o cosmos.

Ele alcançou! A experiência de ler Guimarães Rosa é a experiência de tocar na poesia da prosa. A aventura de aumentar a latitude do conhecimento. No final, é disso que se trata a grande literatura: oferecer-nos atalhos de conhecimento.

Publicado originalmente no SatelJornal, sob edição da Carminha Fernandes.

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3 respostas para “Veredas de João Guimarães Rosa”

  1. Avatar Pedro disse:

    Guimarães Rosa dizia “viver é perigoso”. Euclides da Cunha dizia “viver é adaptar-se”. Um padre que também escreveu livros dizia que “viver é sagrado”. Aquele médico e aquele engenheiro foram lógicos. O padre foi ontológico. Aqueles estão como que “imortalizados”, este como que esquecido. Euclides e Guimarães inteligentíssimos. Um deles, o da ciência exata, detentor da mais explosiva engenharia de expressão escrita. Talvez, Deus o sabe, estes 2 acadêmicos foram como que transmutados por este mundo sedutor e pesado cobrador numa espécie de “fenonhos”, mistura de fenômenos com medonhos. Toda a herança destes 2 nobres compatriotas está transbordada de coisas do mundo e esvaziada na correlação do sentido último da existência. Faltou um verniz, o verniz da Verdade. Isto não invalida ou diminui suas heranças. Poder-se-iam ser grandes legados. Sem o saberem estes 2 irmãos diplomados foram fulminantemente horizontais. Todo ser humano é um mistério. Resta-nos lamentar que a transcendência da Verdade não os verticalizou, não os lubrificou. Eu quero apostar por exemplo que a máquina Euclides ainda vivo nos 50 anos teria escrito A Amazônia e iluminado pelo Universo faria até desaparecer o estrelato de Os Sertões…:)

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