Abre e fecha memória

De avô e chocolate

Foto: Régine Ferrandis Foto: Régine Ferrandis

Vamos combinar: a memória de cada um é formada e deformada por lembranças próprias e alheias. Vamos aceitar: por vezes, não distinguimos se o vivido foi nosso ou do outro. Observe dois irmãos adultos relembrando uma passagem de infância. Sempre há detalhes divergentes.

Vez ou outra volto ao Rio de Janeiro, fico em dúvida se as lembranças de cheiros, fatos, conversas são da minha infância ou se foram narradas, em algum momento, pelos meus pais. É a minha Copacabana, ou a Copacabana deles?

Mas agora dou o crédito certo. A cena que irei contar peguei emprestada da minha mãe, fiquei de devolvê-la em forma de texto. Aí vai.

Ela menina esperando pelo avô, Heroídes Cassiano Bellez, na calçada em frente ao sobrado em que a família morava, no bairro do Estácio, Rio de Janeiro.

O avô, mouro, funcionário do Departamento dos Correios e Telégrafos, chegava pontualmente às seis da tarde – hora em que todas as cigarras cariocas abrem o berreiro.

A garota antevia o prazer ao avistar o homem dobrando a esquina. Ele trazia o lanche para todos. O pacote de café era da marca Palheta que, em 1943, ao ser lançada, oferecia de brinde uma barra de chocolate.

Minha mãe reteve no disco rígido: o avô se aproximando e pondo nas suas mãos o chocolate. Depois, ela não recorda mais do gesto do mouro, do doce na boca. Minha mãe havia perdido toda a memória.

Até três anos atrás, ela recordava. E como se pressentisse que estava prestes a desmemorizar, ela contava e recontava a cena da esquina, do avô mouro, da barra de chocolate.

Esse contar dela me fazia lembrar da Tabacaria do Fernando Pessoa:
Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Pronto: Recordar é recortar.

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3 respostas para “Abre e fecha memória”

  1. Avatar Silvana disse:

    Maravilhosa crôncia, Fernanda.

  2. Nesse momento da minha história e de minha mãe, foi um ensinamento.
    E que linda forma de escrever.

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