Recordo o jardim como floresta, a inocência como triunfo, nós. Te lembro Alegria, teu rosto brilhando ouro. Lembro-me a menina, eu em ti purpureando euforia. Procurávamos o buril que havias perdido, tu o querias como herança para mim. Envoltas pelas flores rolávamos em perfumes, buscávamos. Teus olhos rateavam na loucura, meus cabelos semelhavam raízes. Nas tuas asas voei. Me levavas pela cintura, por sobre as montanhas para que eu pudesse ver na sombra do horizonte a dança das nossas saias.
Espasmos indeléveis, nós duas por entre folhas – seriam antúrios? Quem poderia nos surpreender além de um pintassilgo voyeur? Delito em delírio: a mulher na menina. Tu colocaste a boca sobre a minha boca, as mãos sobre as minhas mãos, teu ventre sobre o meu ventre. Engatilhamos o prazer, orvalhei. Faz vinte anos tu concluía em linha reta, eu apenas iniciava a volta do parafuso.
Agora onde estás? Alegria, um ovo fritando a auréola-gema no asfalto é a imagem em que te guardo, sempre. Recordo: uma chuva de verão nos correu do jardim para o galpão de artesanias. O buril? nunca o encontramos.
Dois anos depois: Alegria e eu seguíamos: Mãos dadas pelo corredor da escola em que havias me matriculado, quando a gôndola no motivo do vitral nos viu. A gôndola é a dona da cena no vitral que, anos mais tarde, descobriria ser a cópia de um afresco quatrocentista. Seu remo é braço seco por água, seus gondoleiros imobilizados em um balé. Miro a gôndola que nos mira, de quem é a iniciativa do olhar?
Tento contar-te, Alegria, que as formas me alcoolizam. Tento compreender a obstinação das linhas, do movimento, das massas de cor. Nossos olhos vendo a cópia de um original – sombra na luminosidade. O vitral nos mostrando uma beleza que não se conta mais: postigos de um castelo imerso, abertos para os sonhos. Também insinuando um terror acrônico, torres-mísseis apontadas contra nós: tu, Alegria. Eu, a menina. Um afresco quatrocentista plagiado em vitral do século XX: a gôndola estava lá, a Renascença estava lá. Eu estava entrando em um Sandro Botticelli, quando a pressão de tua mão sobre a minha me despertou para meu primeiro dia de escola.
Seguíamos. Me dizias que não era preciso ter pátria, que a pátria era o mundo todo. As pessoas atores iguais – ninguém exatamente principal ou figurante. Alegria, tu não vias o mesmo que eu. Enxergavas samambaias dracenas manacás amores-perfeitos no meu deserto. Eu? via ratos ligeiros nos rodapés. Caminhávamos ladrilhos da escola. Por nós cruzavam vírgulas reticências epígrafes aspas. Tu desejavas para mim um ponto – mesmo não sendo final – fosse parágrafo. Eu queria o verbo.
Volte sempre, Alegria!
Ela voltará, Marisa. Beijo.