4 Organsim

Ressoam passos no galpão de artesanias. Abraçado a panos entra o segundo artesão – meio curvado, algo melancólico – com a cara de Saturno. Míope por…

Ressoam passos no galpão de artesanias. Abraçado a panos entra o segundo artesão – meio curvado, algo melancólico – com a cara de Saturno. Míope por arte do ofício que une a linha à agulha. Formador de urdiduras. Não sabemos o seu nome, porém as coisas na Terra têm um nome, vamos chamá-lo Organsim. Vem em direção à máquina de costura – nave de imbuia com bússola de coser e velas de coloridos carretéis – entre arrecifes de cordões carretilhas fivelas fitas métricas ganchos miçangas tesouras. Organsim vai fazê-la falar, mas antes se serve da cafeteira rosa.

Ele sonha a boneca, que Alegria está criando, em uma fantasia de grumete. Quer que ela tenha um signo de viajante: bordado de âncora na talagarça. Organsim sabe que o que não é verossímil na realidade, quase sempre o é na imaginação. Pela janela aberta chegam notícias do mundo, trazidas pelo vento no bico dos pássaros. O timoneiro segura firme a agulha e a linha, pressente o continente que se acerca.

Pela primeira vez na jornada Alegria interrompe o trabalho! Desvia a atenção do baralho de madeira, observa Organsim entrar e se servir da cafeteira rosa. Não dizem palavras, apesar de anos de convívio e artesania: ele é incógnita para ela, ela é dúvida para ele. Do costureiro sua atenção salta ao carrilhão – carcaça das horas, com seus ponteiros-andorinhas migrando migrando. Encara o mais tenaz inimigo: o tempo. Esse demolidor de maniqueísmos, embaçador de daguerreótipos possui os segredos de um usuário de máscaras, além de subtrair a vida de todos corroborando sua eternidade. A artesã sabe que o artefato viverá mais do que ela. Tudo bem, ela volta a pôr atenção no trabalho, isto é, no jogo. Está perto da cartada final.

Nua, a boneca espera a fantasia de grumete; seu corpo exala aroma de cedro perfumando o galpão de artesanias.

A máquina de costura pelo código overloque fala no idioma da tessitura versos de organdi. Mãos do costureiro na roda, compasso dos pés embalam o pedal, casas abertas punhos cortados, marcas de furos na extensão da fazenda, alfinetes fogem do círculo das argolas, a linha corteja a agulha, zíperes olham de viés a cópula dos colchetes, o dedal dá giros de peão, ziguezague dos dedos.

O entusiasmo de Organsim sustenta o debrum da trama. Dentro da tarde, o costureiro deslumbra um oásis sem nunca ter estado no deserto; do mundo – conhece cem quilômetros a ocidente, duzentos a oriente do galpão de artesanias. Ele pesponta a vontade entretela o projeto arremata a fantasia de grumete com um cós de intuição. Compactua com seus botões: em uma homenagem ao êxodo, faz a roupa de marinheira para a boneca – blusa azul marinho com golas de paloma branca. O galpão explode em brim cambraia cetim filó fustão tule e maresia.

Mesmo que a capa celeste despencasse seus astros e toda a poeira cósmica sobre o galpão de artesanias, mesmo assim, Alegria e Organsim nada perceberiam. Absortos em suas criações atravessam o trabalho como dromedários pelas bandas do Sinai, sem sinais de cansaço ou remordimento.

Os artesãos são os anjos da espécie. Pela grande janela: a natureza os observa superior, por mais que primem, é ela a ganhadora, a campeã das formas. Da varanda do dia começa-se a enxergar o quarto do entardecer; os ponteiros-poemas do carrilhão escrevem as dezessete e quarenta e cinco – hora fatal entre todas. Via clarabóia: o lusco-fusco invade. Interregno – não é luz, não é obscuridade -, o indeterminado pulsa. O crepúsculo na garupa do poente visita o galpão de artesanias.

A claridade foge. Solitária a língua do lampião chama a combustão. Imergindo na penumbra as ferramentas comemoram a esperança de, em breve, estarem na intimidade. Libertas da vontade artesã, passando de instrumentos a protagonistas de uma festa secreta. A grande janela do galpão se fecha: notícias do trabalho serão devolvidas ao mundo, através de uma boneca de madeira vestida de marinheira.

A forma finalmente é sonho.

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