Bibelôs de Sangue

Era uma segunda-feira de abril quando a senhora Helena Ramos fechou a porta de sua casa, para nunca mais abri-la. Havia decidido que as ruas não…

Imagem: Régine Ferrandis Imagem: Régine Ferrandis

Era uma segunda-feira de abril quando a senhora Helena Ramos fechou a porta de sua casa, para nunca mais abri-la. Havia decidido que as ruas não mais existiam, que as cidades eram ficções e o planeta Terra, o deserto. Escolhera ser uma formiga atravessando o continente da toalha de mesa, indo ao encontro de um prato com um garfo morto por cima. Os seres de sua confraria de cúmplices.

Claro escuro, cerrou a veneziana da sala abriu a cortina da retina para criar com nuances seu vídeo de terror, onde a vassoura piaçava era Londres na vertical, o coador de café um vulcão cuspindo algas, o óleo na frigideira as águas de uma lagoa no inferno. O isqueiro de mesa, um cantor heavy metal. Helena espatifou-o em caos de cacos, rodopiou entre eles pontas de nervos, levantando os cabelos para cima.

Começava uma revolução onde ela era czar e bolchevique ao mesmo tempo. A Bastilha, o aparador de xícaras esperando a bancarrota. Helena Ramos abriu a geladeira, rolaram azeitonas que como pérolas escorreram por suas pernas. Enquanto contabilizava os piolhos fartos que caíam de suas ilusões, rompeu o pote de maionese, comeu uma salada de pérolas e sonhos. Sabia ser sua última refeição. Agora iria em frente, retirou do prego na parede o grande espelho, colocou-o na pia, abiu a torneira esfregou com força suas imagens.

Estava declarada a guerra. Nesse dia Helena Ramos deixara o mundo para si, a lucidez pela loucura. Numa gôndola feita de pano de prato, cujos remos eram doze colheres de prata, navegou em mares rendados ondas de naftalinas. Não pensem que procurava a terra firme, ao contrário, procurava o centro de um universo irretorquível, um gesto de carinho como a gelatina de uva que ela entornava no leite que levava ao gato de porcelana. Jogou os sapatos no tanque, escondeu a blusa no forno, a saia enfiou no aspirador de pó, a calcinha fincou-a numa faca transformando-a numa bandeira.

Nua pela casa, faminta, indo à origem em alta velocidade, uma primata vestida de astronauta. Seu ar o gás que as bocas do fogão expulsavam, silêncio, Helena entra numa dimensão de espaços infinitos e pesadelos fugidios, sua viagem estava na parada cardíaca do cotidiano. Pegou-se arranhando unhas no que era dentro, sensações que as palavras não podiam. Berrou um uivo mudo, tremeu o corpo, seu nariz caiu inteiro no açucareiro.

Foi então que notou o relógio, adiantou os ponteiros em dez horas, queria saber o futuro que já havia vivido. Atrasou em dez meses o calendário, queria repossuir o passado que certamente iria viver. A atriz que nunca fora ensaiou ao som das gotas de cloro caindo no espelho. Estar ela com ela, longe das pessoas, dos bichos, dos neons lilases. Longe dos seus, perto de quê?

Correu o esparadrapo vedando o olho mágico da porta, não admitiria intrusos, sofregava por uma intimidade emaranhada de mímicas, cacoetes exóticos, tiques de calma, pensamentos no viés da razão. Entrou no quarto falou com a velha cama, virou contra a parede os três filhos congelados nos porta-retratos, não que não os amasse mais, mas estava cansada. Sabia, como sabia, que era um cansaço sem sono, um sono sem sonho, um sonho sem acordar. Sobre a penteadeira as bonequinhas russas, tirou uma de dentro da outra, meia dúzia ao todo. Entendeu que meia dúzia lembrava ovos, ovos lembravam quintais, quintais lembravam figueiras, figueiras lembravam pêssegos, frutas lembravam sua infância, sua infância a sua velhice.

Uma bola de fogo subiu do ventre à boca. Num desespero sem imunidade, se viu um ratinho acuado num labirinto maldoso. Ah, se houvesse cigarros em cena, mas Helena Ramos não fuma nem bebe. Encontrava-se com a ideia estranha de uma pessoa sem vícios, apenas com vínculos, vínculos de náilon, de madeira, de carne.

Pois me sinto não propriamente uma pessoa, mas sim uma estrela de ponta-cabeça, num sistema ao avesso, olhando o planeta Terra com seus países que mais parecem larvas incandescentes. O elemento fogo fugindo do meu rosto para fosforescer as fogueiras, as estilhas. Se estou louca eis um estado positivo, onde imagino vegetação no deserto, solidão no amor, retas circulares e a eternidade. Me sonho de gatinhas atravessando o viaduto do Chá, lá embaixo o Atlântico.

Vejo hélices de navios atracando na Praça Ramos, perpasso nós de horizontes, o relógio aponta as horas contra a capital. Essa cidade-dragão tatuando em suas esquinas filigranas de carne, peles submersas nos trajes da moda. Já não me diz nada o tempo cronológico, agora enlouqueci, dessa vez não retorno, só se for andando de costas, no sentido contrário a toda à comédia.

Helena Ramos queria viver pela última, e talvez primeira, vez um acontecimento sem nenhum olho que a vigiasse, sem nenhum valor que a julgasse. Queria a seca e o rio. Uma alegria em apropriar-se de imagens e metáforas inéditas. Agiu rápido, tão rápido que nem percebeu a barata intrusa andando no armário, onde ela saqueou a lata de tinta e o rolo. Pôs-se a pintar de cor amarela as paredes de sua casa, não perdoava os quadros, os santos, nada.

O universo amarelando acompanhando no tom o envelhecimento do seu coração, ela o ouvia ranger como um violino contraído de raiva. Música em mãos de um mago mau, vinda da profundidade dessa coisa chamada vida.

Correu para a cozinha fritou as esponjas no bule, misturou ao vinho o detergente biodegradável. Gargalhou sorrisos largos, nada de lágrimas, o sal era para as esponjas. A quem dedicaria o esmerado prato? Convidaria um fantasma, um bastava, de tantos que criara. Um fantasma para dançar com ela as notas dodecafônicas. Depois jogariam pôquer com os dados da paixão. Transição frenética, se pudesse descansaria, repousaria sua cabeça dentro de uma gaveta. Quieta aguardaria que o tempo se manifestasse numa euforia atômica.

Mas o tempo deixou de contar, Helena se viu na infância onde não havia preocupação com ponteiros, folhinhas, champanhes rompendo os anos. Uma quietude pousou no seu rosto, os gestos se tornaram lentos, quase alusão de um caminhar pela casa. Como se piscando os olhos o dia fizesse a ordem, os móveis se espalhassem, a louça caminhasse para o armário, o café mergulhasse na térmica. Mas ela não pôde mais suportar o automatismo de uma arrumação de décadas.

Bagunçou tudo: atirou para o alto os novelos de lã, espalhou panelas, incendiou cortinas, transferiu bonequinhas russas para o saco de lixo e o espremedor de alho para a penteadeira do quarto. Da televisão arrancou os transistores, acendeu fósforos na urgência de conferir se o ar que respirava seria, por ventura, inflamável. Teria que fazer. Uma segunda-feira promissora de motins. Helena Ramos duelaria com Helena Ramos. Escolheram as armas, ela iria com a alma, a outra viria com o futuro. Sem testemunhas sem juiz como uma aranha voltou-se na própria teia.

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