3 Ferramentas

Meio-dia, coincidem os ponteiros em núpcias do carrilhão. Grávido de sol o galpão de artesanias sorri dentes. A raspadeira está nos contando que Alegria, a bruxa…

Meio-dia, coincidem os ponteiros em núpcias do carrilhão. Grávido de sol o galpão de artesanias sorri dentes. A raspadeira está nos contando que Alegria, a bruxa da ensambladura narrando uma forma para nós, aperta cerra entalha plaina a madeira. A artesã considera as partes que decifram o todo, se esforça por rememorar todas as seções do sonho. Trabalha com tal destreza que poderíamos tomá-la por ilusionista tirando do caos, cosmo.

Age sem pressão, a força está mobilizada em auscultar o sopro onírico que intervém em favor de sua criação; que dá luz às estrelas de sua gramática vegetal. A mão-motor aponta, gatilho, a madeira finalmente rendida entrega a imagem. Cedro mutilado, sacrificado; emprestou sua vida a uma invenção. Nele, Alegria construiu piscinas para o mergulho de sua imaginação. Glória artesã – o projeto materializado, surgido das leis da ensambladura: cerne com cerne, lenho com lenho e mais alguns segredos que Alegria não diz.

Striptease: o cedro revela o artefato. A artesã incrusta na matéria o emblema de sua vontade: faz um boneco! Com o corpo interpela a madeira; a pulsão dos músculos é gasolina azul para a verruma cavar o umbigo do boneco. Delicados vestígios de trabalho insinuam a testa, o nariz, o queixo.

Por ser madeira, o artefato guardará para sempre uma intuição vital, hálito de vida. Alegria torneja a cabeça do boneco – não espera que seja o mais belo nem o mais perfeito-, o quer excludente, assinado. Interroga os dedos, eles querem mais, determinam o sexo da criatura: feminino.

O trem fantasmagórico alcança a estação Forma, o deserto se floriu. Impossível retroagir. O tronco de cedro nunca será dormente, jangada, fagote. É uma boneca!

Alegria sonha o rosto de sua criatura. Concentra-se como máquina, pois rostos são palcos onde expressões encenam atos de emoções. Ao esculpir a boca sabe que não pode errar, mínimo descuido, e um esgar se eternizará. Acrescenta ao rosto uma ruga, deseja que a boneca tenha a idade da árvore que matou. Volúpia do trabalho diurno, às claras, o sol equilibra a oscilação exata entre a aprendiz que procura e a feiticeira que encontra.

A artesã quer que a criatura – fiel ao vegetal de origem – cresça em direção à luz. Decide que ela terá movimentos, daí maneja pinos, parafusos sextavados. Faz braços capazes de abraçar, pernas aptas para amar. Alegria cheira cola de caseína: sonha sua criatura pisando as águas do globo, nadando as terras do mundo. Cria dedos de pianista para a boneca, os seus são curtos e gordos não obstante hábeis e leves. Contornando a teimosia do cedro, com paciência de ferro, o torno conclui sua volta: ombros elegantes para o artefato.

Ela espera que sua criatura seja insondável, então entrega o melhor de si: trabalha trabalha. Dois entalhes profundos escolhem o espírito dos olhos – bolinhas de cobre serão as pupilas, membrana íris metal. O bisel aprofunda o corte para que os olhos desfrutem da sombra sob as espessas pestanas.

Súbito Alegria quer a boneca terminada, realizada em sua forma. Deseja deixar o galpão, passear na tarde de outono o bosque, conversar com as folhas secas. Sim, admirar a maestria da natureza que dá para cada ser, por ínfimo que ele seja, o afã da individualidade. Mas está presa, atada por invisíveis e poderosos nós ao artefato que cria. Sente o peso da criação; da obra, jamais.

O artesanato prossegue. A Alegria tímida vai se agigantando até o uivar da euforia: com as raízes do tronco de cedro trama vasta cabeleira para a criatura. Chegará o momento em que o drama da tensão dos músculos com os neurônios – que em conjunto imprimem movimento às ferramentas que, por sua vez, imprimem energia à matéria – cessará. O trabalho corre célere ao encontro da última estação: a Arte Final não tarda.

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