Mestre da luta contra o racismo, Abdias Nascimento (1914-2011) foi um abre-alas da consciência negra. Depois de uma vida inteira, ele deixou atrás de si muitos caminhos desenhados com a cumplicidade dos orixás.
O nome Abdias Nascimento está ligado a uma das maiores ousadias político-culturais do século 20 no Brasil: a criação, no ano de 1944, do Teatro Experimental do Negro, o TEN.
A chama deflagradora surgiu, anos antes, em Lima, capital do Peru. Foi lá que o jovem Abdias assistiu à peça O Imperador Jones, do dramaturgo americano Eugene O’ Neill. Apesar de Jones ser negro, o ator que o interpretava era branco com mãos e rosto pintados de preto.
Abdias se lembrou imediatamente da situação dos atores negros no Brasil. Os poucos que conseguiam a chance de sair dos bastidores encarnavam personagens secundários, quando não figurantes. Aqueles que entram em cena, mas não falam.
Quanto às atrizes negras, ou representavam eternas empregadas domésticas ou fogosas garotas que comercializavam sexo. Protagonistas negros ou negras? Nem pensar!
Mais fundo ainda, Abdias se recordou de sua infância no grupo escolar em Franca, cidade do interior de São Paulo. Por anos seguidos, ele se preparou para o teatrinho do final de ano. Decorava os monólogos, treinava os diálogos, ensaiava mímicas. Mas, na hora H, nunca era chamado para subir no palco.
Então em Lima, enquanto assistia ao patético ator pintado de preto, percebeu o que tinha evitado ver na infância: ele havia sido preterido por ser uma criança negra.
Nascido 26 anos depois da Lei Áurea, teve os avós escravizados. Como a maioria da gente negra, eles construíram riquezas. E após a Abolição, em 1888, ficaram com as mãos abanando e o olhar perdido para zero horizonte.
Sua mãe, Georgina, era doceira. Seu pai, José, era sapateiro. Como frisa Abdias: Sapateiro, cujos filhos andavam descalços. Da mãe, Abdias herdou o senso aguçado de justiça.
Um dia, no meio da rua, uma mulher branca começou a espancar um menino negro. Os brancos passavam, olhavam e permaneciam indiferentes à cena de violência. Georgina não vacilou, partiu com a sombrinha para cima da agressora.
Mais tarde Abdias contaria para o poeta, ativista e biógrafo Éle Semog: Aquela atitude da minha mãe foi, de fato, uma lição formidável que eu jamais esqueci. Com 15 anos, Abdias ingressou como voluntário no Exército Brasileiro. Lá experimentou a amizade, o trabalho duro e o racismo.
Mas não abaixou a cabeça e nem curvou a espinha à discriminação. Por conta disso, passou dois anos na prisão. Aproveitou a estada forçada, a privação de liberdade, para devorar livros na biblioteca e criar o Teatro do Sentenciado, no qual os presos escreviam, dirigiam e representavam as peças.
Ao sair da prisão, o rapaz reorganizou a vida e, ao lado de um punhado de amigos e amigas, partiu para a sua grande ousadia – a criação de um movimento teatral para acolher artistas negros.
A luta de toda a vida
O Teatro Experimental do Negro estreou precisamente com a peça Imperador Jones. Abdias escreveu a Eugene O’ Neill explicando a proposta do TEN e pedindo a cessão dos direitos autorais.
O autor da clássica peça Longa Jornada Noite Adentro respondeu com um sim entusiasmado. Assim, ao contrário da montagem limenha, a personagem Jones foi interpretada pelo ator negro Aguinaldo Camargo.
A estreia ocorreu com grande estilo, depois de muita luta, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, então Capital Federal, no ano de 1945. A crítica teatral reagiu bem e o grupo seguiu seu destino.
Duas grandes atrizes negras despontaram no TEN: Ruth Rocha e Léa Garcia. O próprio Abdias também estreou e encarnou nos palcos a personagem Otelo, de Shakespeare.
Abdias Nascimento, entre seus múltiplos talentos, compreendeu que a luta contra o racismo deveria se dá em todas as frentes. Assim, além da dramaturgia, o TEN desenvolveu projetos de alfabetização.
Sob a batuta de Ironides Rodrigues, cofundador do TEN, trabalhadores e empregadas domésticas se iniciaram nas primeiras letras do alfabeto e da cidadania. Nessa larga esteira, o TEN também editou o jornal Quilombo, veículo político e informativo.
Os anos 1940/1950 foram profícuos, Abdias encabeçou várias ações. Foi um dos organizadores do concurso de artes plásticas Cristo Negro, que teve Dom Helder Câmara como um dos jurados. O primeiro lugar foi para Djanira, destacada pintora brasileira.
Ele também foi um dos fundadores do Comitê Democrático Afro-Brasileiro e organizou a I Convenção Nacional do Negro. Nesses espaços políticos, entre outras demandas, reivindicava que o racismo fosse reconhecido como um problema a ser enfrentado por toda a sociedade brasileira e considerado crime.
Lutando aqui e ali, ele sempre se negou a fazer o jogo da maioria dos partidos e sindicatos que encarava os negros como simples votos. Em momento algum foi conivente com as ideologias que, em nome da luta de classes, sufocavam demandas específicas da população negra.
Com a ditadura militar, deflagrada com o golpe de 1964, a vida dos militantes da causa negra ficou ainda mais difícil e os anseios tornaram-se quase impossíveis de serem alcançados. A democracia racial era cantada em verso e prosa para sufocar qualquer denúncia de racismo. Abdias Nascimento partiu, então, para o exílio.
Tão longe, tão perto
Nos Estados Unidos, por mais de uma década, deu aulas, fez conferências, ministrou palestras, estudou e aumentou sua compreensão acerca do pan-africanismo.
Não aprendi nada de novo com os negros dos Estados Unidos, mas certamente me senti mais à vontade sem aquela mordaça da democracia racial, de esquerda ou direita, que sempre nos prendia no Brasil, contou ao seu biográfo Éle Semog.
Na década de 1980, retornou ao país e seguiu mais articulado do que nunca. Ligou-se ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), dirigido por Leonel Brizola. Abdias batalhou pela atenção do partido às questões da população negra e do combate ao racismo.
Ser fiel aos anseios da população negra brasileira, quanto à melhoria de sua condição de vida, à promoção de sua dignidade e ao respeito a sua identidade étnico-racial, foi o mote na vida do professor emérito da Universidade de Nova Iorque e Doutor Honoris Causa pelas Universidades Federais de Brasília, do Rio de Janeiro e da Bahia.
O filho da doceira e do sapateiro conquistou tudo isto e muito mais nos seus caminhos de vida. Foi deputado federal, senador e secretário de Estado. Participou ativamente do processo de formulação da Constituição Brasileira de 1988 – que declarou o racismo como crime inafiançável e reconheceu o direito dos quilombolas à posse de suas terras.
Discursou em palácios e em salinhas de comunidades de bairro. Esteve na companhia de chefes de Estado e de trabalhadoras domésticas. Nunca traiu sua origem. Seu povo foi a sua insígnia e sua melhor lição também.
Há ainda o artista plástico. Abdias é autor de uma série de acrílicos que representam os orixás com cores virtuosas e muita informação afro-brasileira. Ousado, aventurou-se na poesia.
Ele fez tudo de peito aberto. Transitou de uma área a outra. Não se deixou aprisionar na lógica dos escaninhos, nem nos cárceres das caixinhas.
O dramaturgo, pintor, professor, ator, ativista dirigiu por muitos anos, ao lado da companheira Elisa Larkin Nascimento, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros Ipeafro, no bairro da Glória, Rio de Janeiro.
Para ler mais:
Abdias Nascimento – o griot e as muralhas de Éle Semong e Abdias Nascimento.
Brinde
um personagem digno de um longa metragem
Carvall, vamos fazer? Beijo.
Obrigada pelas informações!
De nada, Maria Cristina. É sempre um prazer.
E Abdias é pouco conhecido nas escolas de Teatro ….ainda.
Marilda querida, não è à toa que o Abdias não é conhecido. Há ainda há muitas trevas na questão racial. Super beijo e obrigada pela leitura
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