Cá Camila aguarda o sol desovar o dia para partir. Em véspera de quem vai. Indiferente à lúgubre opereta da dúvida. Sempre suspeitou que partiria em um amanhecer. Lá fora: o bosque negro, a lua elíptica. Aqui dentro: a língua do lampião são meus olhos acompanhando Cá Camila, que determinada mete seu espírito na mochila.
Seu espírito não embarca sozinho: um exemplar de Dom Casmurro satisfará seu apetite esteta. Latinhas de atum, seu apetite estrito. Nos trânsitos saturnais, um litro de rum para se embriagar. Para brincar: um unicórnio-miniatura com chifre de chita. Para chorar: um retrato três por quatro do galpão de artesanias.
Mas entre o espírito na gualdrapa e pernas no espaço; entre o oceano do desejo e a praia da realização; entre a nostalgia do bosque e o futuro chamado Veridiana; entre o projeto e a ação: ocorre o hiato de uma febril madrugada. Onde cada minuto tem gula milenar.
O verbo ir não tarda. Para conjugá-lo no momento certo e em todos os modos, Cá Camila age. Remexe no baú que foi de Alegria. Se depara com a vestimenta do êxodo: um chapéu lilás – que em sua cabeça ventará celebrações; um tênis violeta – coturno-agulha – para cerzir picadas desvios tangentes sendas corta-caminhos; uma capa negra tendo na lapela o camafeu marinho que foi de Organsim.
Já vestida – trocou a fantasia de grumete pela nova roupa – e na expectativa da retirada, cruza o galpão vértice a vértice. Então a vejo como há dois séculos as figuras eram vistas no fantascópio: à oscilação da luz de vela, girando, girando. Não nego o meu encantamento, o fascínio por esta mulher que semelha-se, apreendida em movimento, a uma composição cubista: multirrevelada.
A aurora não tarda. O imaginário fareja mapas na testa da mulher que, por sua vez, traz o faro na retina. Ela sabe que o mundo existe para ser olhado. Senta-se pela última vez na cadeira de balanço. Bêbeda de ansiedade, leva a testa ao ventre. Sóbria de emoção, leva a mão ao bolso da capa negra. Contata algo. Toca em algo ao mesmo tempo: quente e frio, liso e rugoso.
Cá Camila toca em um filhote de morcego. Daí levanta-se pânica como a guerra, pálida como a cal. Começa a luta para desgrudar sua mão do corpo da ave-mamífero, que pulsa. A assustada criaturinha – focinho multiforme, olhos encovados, boca desmesurada, lábios rachados, pezinhos com ventosas, nariz com excrescência, rabinho de rato, asinhas de vampiro, orelhas de diabo, olhar cego – se prende com seus dentes e garrinhas à mão da mulher.
Por um lapso no pavor, Cá Camila participa de um tríptico de Hieronymus Bosch em um jardim de horrores. Por fim, o morceguinho se liberta da mão cal. Salta ao chão, dá pulos de sapo – herético e feiticeiro. Depois alça vôo: janela a fora, bosque a dentro.
Passados trinta minutos do acontecimento, Cá Camila está serena. Estranha mulher, combalida de ternura pelo filhote que teve nas mãos e rejeitou. Batiza-o, após a fuga, Estrela Negra. Elege-o guardião simbólico de sua iminente viagem. Folhas de antúrios, arrebatadas pelo vento, invadem o galpão de artesanias ostentando em seus desenhos: presságios do mundo.
Ela espera o sol, como ontem esperou a lua, fritando vaguidades em óleos nostálgicos. Arregaça lembranças, espreguiça saudades inegociáveis. O passado ficará virgem na memória, a fantasia de grumete no varal. Adeus pequeninas jacas, jabuticabas gigantes, montanhas subterrâneas, invernos incandescentes. Pois inauditas contradições em novas ciladas a espreitam, perfeitas. Adeus soluções de continuidade, receitas de rotina, cacoetes familiares, iconografias queridas.
O passado no varal secará à ação do futuro. Em horas deixará o galpão natal e dentro dele a música da infância, a dança da juventude, a voz do relógio e o silêncio dos minutos. Logo o presente se encarnará no futuro e, juntos, escarnecerão os ontens. Cá Camila lê o ocaso da madrugada como a grande morte necessária à ressurreição. Se encontra como a nota final de uma música: esperançosa de aplausos.
amo Cá Camila
Fico feliz, minha amiga.
Surpreendente, cinema.
Cinema? Gostei. Beijos, Marilda.