8 Globo

Foi então que denso e perigoso medo semeou-se no jardim da minha pele, sequelas. Meus nervos incendiaram-se, sem que deles nenhuma chama se desprendesse. Apertavas o…

Foi então que denso e perigoso medo semeou-se no jardim da minha pele, sequelas. Meus nervos incendiaram-se, sem que deles nenhuma chama se desprendesse. Apertavas o passo, eu o diminuía. Eu percebia como debutante prisão, a escola. Pela primeira vez o mundo e eu estávamos frente a frente, sempiterno, sub-reptício, coletivo de estilhas, movimento pendular, epifanias, profundidades, superfícies: o mundo.

Que o tempo cuspa balas para a frente, vivíamos. Nos ladrilhos do Grupo Escolar, meus pés imitavam chumbo; os teus parafraseavam Ícaro. Passou por nós um rato. No espaço resplandeceu o breu, minha infância de brilho no edifício das trevas. Lembro, Alegria, riscaste um fósforo na aspereza do real, alumbrando a saída? Não. Apenas acendeste um cigarro.

Mãos atadas, expectativas separadas. Íamos. Meus pés voavam perplexidades. No edifício das trevas, o vazio perguntou em eco: O que semear em um chão de ladrilhos? Somente um saturno de plástico ou milhos de acrílico. Me fiz estilhaços, grunhindo revolta.

De chofre me despedia dos truques do faz-de-conta. Iria provar o Fel Real. Meu sangue gelou, o rosto ficou cal, estado de choque. Alegria, tu amparaste o meu pavor, estavas comigo entretanto me deixavas.

Justo na infância construiria os mitos do futuro, as paisagens da alma. Cotejava-me com o avesso dos que caminham de uma norma à outra. Sonhava ser verbo entre vírgulas. No término do corredor a consumação da tragédia: eu frequentaria a escola. Tu me beijaste, tu me abandonaste.

O afresco se desprendeu do vitral. O original, da cópia, transformando o motivo: a gôndola foi a pique, o castelo emergiu, as torres-mísseis mergulharam no céu. Por momentos me conformei, mas passaria a faltar e faltaria sempre as tuas mãos sobre as minhas.

Agora instalada na cadeira de balanço do presente, me reparto entre a volúpia de olhar para a frente e a vertigem de olhar para trás. Para frente: promessas de sínteses. Para trás: imagens que foram fatos. Pergunto: de que adianta recordar – saber novamente de coração? Qual a vantagem de trazer para o momento em que vivo a transparência do vivido vinte anos atrás? Que matéria é essa que não sendo a presença toma o seu lugar?

Qual o sentido em acender as luzes do palco, quando o público já se foi? Que energia é essa que ao mínimo estímulo – uma luz, um cheiro, um som uma dobra de esquina – se põe a fabular? Como nomear a força que inexoravelmente liberta as lembranças das masmorras da memória? Compor realidades aéreas; embarcar em boeings de reminiscências, frequentar o baile dos fantasmas, tornar-se doente de nostalgia; para quê?

Mas sem as recordações, sem o espólio pessoal e intransferível das imagens, como nadar nas águas que não passam uma segunda vez pelo mesmo rio? A memória é o porto, as lembranças barcos lançados aos mares de nós mesmos. Todavia quero caminhar o futuro: meu corpo impulsiona a cadeira de balanço para frente.

Congelo a respiração: atiro-me na representação de um espaço isento de gravidade, em um tempo sem horas. Sinto o futuro na metáfora do foguista lutando para o presente não cessar – carvão para incendiar a vida! Vejo pontes sobre avenidas em cidades que não passei. Pontos culminantes em montanhas que não escalei. Abismos nos quais não me precipitei. Passeio rostos gestos construções de alvenaria; pisco a néons inéditos. De alguma maneira intuo: ir para o futuro é acercar-se do passado.

Mas basta! Estou com sede do presente. Imobilizo a cadeira de balanço. Me levanto chego à janela abro a veneziana. Reconheço-me na curvatura da flecha que o destino-arqueiro, com os olhos vendados, disparou. Estou aqui e desejo sair. Quero ir a um lugar, qualquer lugar fora daqui. Libertar-me do calabouço doméstico, sonhar o planeta e perfazer paisagens.

Então passo à ação. Abro o baú que me presenteou Alegria. Dele retiro o globo que foi de Organsim. Uma herança completa: a intimidade e o mapa do mundo. Um encontro de gêneros: o feminino e o masculino em mim – a filha.

Giro o globo – mostrador de espaços – implanto na calva do tempo fios do instante. Em uma guinada a esfera gira gira, as linhas que fronterizam países se mesclam, armando mosaicos primorosos. Com o dedo paraliso o movimento do globo.

O indicador aponta o sul da Bahia, a unha encrava em um lugar chamado Veridiana. Decido: é para lá que vou. Meto o espírito no corpo. Me lanço. Eu quem sou? Sou Cá Camila.

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