Giro o mostrador de espaços, pinço na cabeleira do presente fios do passado. Em um movimento de ponteiros a haste desliza para a noite das horas; reanimam-se minutos, ressuscitam-se segundos. Redemoinho de resíduos trazendo para o final da tarde de hoje, o começo de um dia de vinte anos atrás.
Me instalo in memoriam na infância. Revejo a cozinha do galpão de artesanias: caracóis de fumaça escalando o ar. O fogão em cortesia metálica sorrindo quatro bocas. No desenho da toalha de mesa, âncoras repousadas. No motivo dos azulejos, peixes engolindo bússolas. Frasquinhos da Índia dividindo a prateleira com compotas de Minas.
A luz daquela manhã era como deve ser a primeira hora em Eldorado, puro ouro. O cheiro era de sementes vermelhas que, uma vez, secas e douradas ganham a cor marrom-escura. Sobre a pia o coador de pano coagindo o café, sob a pia a palha de aço fazendo cosquinhas no sabão de coco. Outros utensílios de alumínio provocando, hoje, nostalgias de porcelana.
Lembro: do canastro uma jabuticaba rolou, desde a geladeira o cadáver de um frango espreitou, pelo vitrô uma máscara passou; compus minha primeira natureza morta. Concentrava-me mas, tomada pelo etéreo, entornei um cântaro que no lugar do vinho continha o tempo-bomba.
Então: a tampa ao chão, gargalo partido. Do bico da cafeteira rosa saltou a memória – amor instantâneo! Escolhi em mim a arte de petrificar momentos. A alma tem um terceiro olho que congela as imagens para sempre.
Naquela manhã eu não sabia direito o que fazia, vinha de uma noite insone por um passeio ao farol. Organsim dormia, eu sempre fui vigília. As cigarras davam o brado do verão. Pelas frinchas do galpão de artesanias imaginava: petúnias petulantes ao vento, gerânios gerando luz, presenças de gafanhotos-peregrinos dando o tom à cidade cartão-postal.
Pressentia: se importantes acontecimentos da vida seriam perdas, por que não começar? Abraçada ao brinquedo querido – um palhaço de pano que é matéria de fustão, espantalho de cambraia, debrum de recordação – transpus o portão cruzando uma esquina da, então, Guanabara.
Alcancei as margens gradeadas do rio Maracanã, amava suas águas mesmo putrefatas em nódoas da miséria. Rio de Janeiro – como eras no pretérito do meu presente imperfeito? Irreversível chamei ao maravilhoso, anos mais tarde chamaria irreversível ao horror.
Naquela manhã estava descobrindo que o passado não se vai por pernas próprias, é preciso empurrá-lo. Lancei o palhaço de pano nas águas sujas do rio Maracanã – que se fosse! Pois se importantes acontecimentos da vida seriam encontros, por que não terminar? Havia chegado a hora de me despedir da infância.
Hoje, do gueto do tempo os olhos adormecidos de Organsim pousam sobre os meus, nanquim negro na branca face do mármore.