Cá Camila em sua odisseia particular: se encantará com a mudez das sereias? O pranto das hienas? A graça dos urubus? Confundirá a terra com o mar? O homem com a mulher? A ave com o morcego? O enigma com a esfinge? Não roubará? Não matará?
Ela será capaz de cumprir o destino que o acaso pelos seus dedos soletrou no globo? Ela é confiante, ela é confiada. Quer ser pote sem fundo a recolher as águas das aventuras. Cozinha esperanças em fogo alto. Aguarda que a luz invente veredas – para chegar, expressa, a Veridiana.
Ouve o galo anunciar: Vai nascer mais um dia, vai nascer menos um dia. Se comove com a ideia de que, por mais uma manhã, seguirá sendo eterna. Inicia o ritual do adeus: acaricia o fogão que chora quatro bocas. Lança uma lágrima ao carrilhão que em sua homenagem paralisa os ponteiros, em cópula, nas seis horas. Com sopro âmago extingue a chama do lampião.
Se despede do galpão de artesanias formado por cantos de intimidades compartidas – testemunha de um defunto outono que a viu nascer. Tudo acabado.
Lá fora o sol carrega nas tintas da palheta vegetal, a alba delira. No galpão repousa a delicada fragrância da madeira de cedro. O cérebro de Cá Camila sussurra: Hora de partir – fina lâmina corta o olho, nó górdio trança a garganta, cano de pistola na têmpora, adaga no ventre. Ela põe os pés no ar. Não volta o rosto. O que ficou é morto. Seu objetivo é alcançar Veridiana. Mas antes é preciso chegar ao porto.
Quando o sol desovou o dia, ela ciscou o mundo. Pisou profundo na terra. Na dividida: metade parte com o mapa do retorno escrito a fogo, metade vislumbra o futuro em todos os átomos. Corolário: as duas metades formam uma unidade: ela.
Cá Camila não se lança em busca de sua identidade, o que parece querer é exatamente perdê-la. Atira pátina sobre a tradição. Está disposta a ceifar as raízes que floresceram sua vida. Carrega dois maços de espinafre da horta e uma fotografia polaroide do passado. Nas mãos, uma nikon imaginária para registrar o porvir.
Notas de promessas desafinam o cotidiano, provocando uma polifonia de combinações. O coro doméstico perde uma voz, a de quem soletrou ao acaso o itinerário do próprio destino. Mas para alcançar o porto, e daí Veridiana, é preciso transpassar o bosque.
Abrir as cortinas da retina. Regular a máquina dos sentidos. Se orientar nos sendeiros que se bifurcam. Comer as paisagens de passagem. Conviver com a umidade da grama. Proteger o rosto da fúria do sol. Copiar a agilidade dos lagartos. Desviar-se das temerosas cobras. Observar as áreas de sombra: Lutar contra o exército de muriçocas. Saltar pequenos córregos. Não se ferir nos espinhos. Diferenciar o bom do mau cogumelo. Ter a intuição como guia e, sobretudo, não retornar os passos.
Cá Camila é capaz de tudo isso, não por qualquer ciência, sim por uma alquimia filosofada nos olhos. A energia onírica que em Alegria se concentrava nas mãos, nela está represada no olhar. Viver e ver mesclados – dois verbos com o mesmo significado.
Nas tantas horas que precisou para atravessar o bosque, cerzindo com o coturno-agulha sua passagem para o mar, Cá Camila saboreou nuanças de beleza: pôde apreciar as vangoghnianas gradações do verde, o movimento nervoso do vento nas folhas, a conversação das pedras, o rouxinolear entre o Melro e o Pássaro Azul. Foi capaz de compreender que era o caminho que a fazia caminhar. E sorriu.
A uma certa altura avistou na entrada de uma gruta o filhote de morcego Estrela Negra. Com asinhas de vampiro ele acenou para ela, que respondeu ao cumprimento com o bater de sua capa negra. Foi então que o camafeu marinho – que pertenceu a Organsim – se desprendeu da lapela e mergulhou nas asas do vento. Cá Camila nada pôde e ficou séria.
De repente: a sensação de que as grandes partidas trazem incubadas a vacina contra os retornos. À medida que avança em direção ao destino, o galpão de artesanias vai conquistando o status de simples moldura na vasta pinacoteca da memória.
Que beleza! Obrigado Fernanda pela serenidade da sua escrita
Ricardo, querido. Eu quem sempre agradeço. Inclusive pela gentileza de comentar no site.
Beijo grande.
Amei, amo Cá Camila e seu modo viajante de ser.
Obrigada, minha Re.
Essa Camila lembra um pouco a minha caçula, de mesmo nome. É meio louco você ir tentando entender uma filha, tentando ajudar e sempre se surpreendendo com o fato de que elas estão sempre se superando. Será que as personagens são filhos também?
Maria Cristina, nunca pensei que personagens possam ser filhos. Mas acho que faz sentido. Como escrevo muito sobre o passado, meu pai e minha mãe são grandes inspiradores de personagens. E olha, obrigada pela leitura e pelo comentário. Sempre.
Adoro este CA Camila.
Super, Luca.