1 Fiat lux

Entretanto o olhar insiste: Duendes da noite passam o caduceu para o dia, a madrugada no rastro da lua se retira. O orvalho encharca a penumbra,…

Entretanto o olhar insiste:

Duendes da noite passam o caduceu para o dia, a madrugada no rastro da lua se retira. O orvalho encharca a penumbra, aurora na bicicleta da manhã irrompe no galpão de artesanias. Câmera na mão da luz procura as ferramentas e seus duplos; sombra – eco de imagens reproduzindo as formas. Bruxuleia a retina do sono. Solitária a língua do lampião chama a extinção.

Ferramentas organizadas segundo a lógica do artesão, no escurinho, dormem. O machado sonha que é uma árvore; a bigorna, pena de pássaro. Enlanguescidos de amor um casal de formões abre os olhinhos; a mó boceja indiferente; ronca a raspadeira entre morsas. A noite foi pródiga em ilações. Canto do galo: ferro e madeira despertam para a vigília. Vestem o hábito da utilidade: esperam a mão que transforme o repouso em aceleração, a ideia em ação, a natureza em artefato; aguardam o humano.

Via clarabóia: foguetes de luz alvejam a mesa do artesão. Três pernas a equilibram; seu corpo exala peroba linhaça oliva. A mesa não é só trabalho – banca de carpinteiro, toca de marceneiro, trama de sarrafos. A mesa é o mundo, mar vigiando farol. Ela tem a aspereza exata para repousar cristais e a delicadeza incerta para receber metais. É também a casa dos pequenos instrumentos: o cinzel, o buril o estilete, a cafeteira rosa.

Por uma fresta a natureza exibe em compulsão melancólica o outono, desmaia nas cores lágrimas da primavera invisível. No bosque uma generosa árvore – que já deu ao cabo do machado a própria carne – quer de volta suas folhas, que seqüestradas pelo vento pernoitaram no galpão; aqui fizeram amizade com as folhas de lixa. Enquanto seu lobo não vem, enquanto o artesão não acorda, enquanto a vontade não se anima: a imaginação se autoalimenta.

De dó a si, as ferramentas-instrumentos escaladas pela euforia solar, afinadas pela doçura de abril, regidas pelo outono, em um pequeno concerto tomam o café da manhã. O martelo-maior batendo no torno marca o ritmo: o primeiro serrote pergunta: uma oitava acima o segundo serrote responde: o buril salta: a plaina flana: a tesoura e a tenaz se enlaçam num tango de aço: a mó e a enxó fazem o coro: ouve-se o solo da serra tico-tico; feliz o grampo de carpinteiro aplaude o temperado auroral.

No meio de tão saborosa liberdade um policial não passa desapercebido – frêmito, as ferramentas silenciam – pois, disfarçado em móvel de mogno, eis o metrônomo carrilhão! Seus ponteiros-lanças indicam as seis horas.

Fiat lux. Soa o tempo em que a imaginação se alimentará do trabalho. Entra no galpão de artesanias – trajando túnica vermelha, na cintura um cinto-serpente mordendo o próprio rabo, cabeleira branca, olhar ávido, arrastando um tronco todavia com raízes – uma mulher.

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2 respostas para “1 Fiat lux”

  1. Avatar Ana Muniz disse:

    Li inteiro e fiz uma viagem pelos mares de Cá.

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