Três meninas. Denise, Fátima e eu. A tarde era de um domingo medíocre e acalorado. A brincadeira, proposta por Fátima, consistia em representar uma cena teatral: o momento em que o príncipe encantado beijava a bela adormecida, acordando-a de um sono enfeitiçado para uma vida fausta em promessas principescas de amor, filhos e paz.
A falta de cenário não incomodava, pois não havia público. Nos preocupamos apenas com o figurino. A madrasta jogou um xale negro e imenso sobre os ombros, a bela cobriu-se com uma camisola branca e eu mantive minhas calças compridas. Começamos a atuar.
Fátima soltou uma risada que imaginava de bruxa má. Denise deitou-se no chão com os olhos bem fechados, eu a beijei. Então aconteceu: minha língua encontrou a língua de Denise e o beijo revelou-se delicioso. Um beijo de língua entre duas garotas de 11 anos.
O que Denise sentiu eu nunca soube. E passado quase meio século jamais descobrirei. Sei que eu, a menina-príncipe, viajei. A língua de Denise transformou-se em um tapete voador e me transportou daquele domingo para além das montanhas do Rio de Janeiro e do oceano Atlântico. Aquela língua conversava com a minha e me contava de tesouros possíveis.
– Já chega!, gritou Fátima francamente amuada.
Eu tive uma iluminação: – Vamos repetir a cena, vamos ensaiar até ficar bom.
Denise não disse nada. Tão somente me encarou com seus olhos enormes, secretos, de amêndoa. Tudo o que eu queria, com toda convicção, era voltar a beijá-la. Foi o que fizemos.
Seguimos com as línguas quando eu senti que algo saía de dentro do meu sexo, molhando a calcinha. Algo que jamais havia sentido. Fluxo indescritível. Logo Fátima, a líder, cansou de ser bruxa e Denise, a doce, se levantou. Fartas do teatrinho queriam outro jogo naquele esmorecer domingueiro.
Eu decidi que não brincaria de mais nada, mesmo porque sabia que as amigas iriam querer brincar com bonecas. Eu detestava bonecas, todas elas. Odiava as bonecas que traziam um sorriso congelado, as que traziam um beicinho choroso, as que eram meninas, as que eram meninos. Para mim, bonecas pareciam crianças mortas.
Por fim as amigas se foram e eu fui pesquisar-me no banheiro. Então vi na calcinha o sangue. Inaugural. Estava menstruando. Assim como minha mãe, minha tia, minha irmã mais velha. Senti tentáculos apertando a garganta: Acabou-se a infância, chorei.
A mãe disse – Agora você é uma mocinha.
A tia alertou – Não poderá mais subir nas árvores
A irmã concluiu – Você vai ver como é chato.
A mãe explicou como colocar o absorvente. E prometeu que contaria para o pai. Depois ele não disse nada. Esse assunto não era para homens.
Segunda-feira, na escola, contei a novidade. Denise sorriu e Fátima disse:
– Você tem que disfarçar bem o modess para os meninos não perceberem.
No mês seguinte à primeira menstruação, meu corpo explodiu, cresceu para todos os lados. Meus peitinhos pressionavam a blusa escolar. Acabados de nascer já vicejavam.
Nesse momento descobri o significado profundo da palavra esconder. Eu precisava esconder a menstruação e dois incômodos seios. Esconder o novo corpo de mulher na recente menina. Misturado a essas estranhas transformações eu guardava a lembrança da língua da Denise. A memória daquela boca.
Em outra tarde de domingo, eu e Denise saíamos de mãos dadas. Entramos pela milésima vez na padaria Majestade da Tijuca. E aconteceu: o balconista se aproximou furtivo e tocou os meus pequenos seios Apertou-os. Eu me senti um pãozinho francês apalpado por um sapo. Denise se salvou. Denise ainda não tinha seios. Por que cabia a mim tê-los?
Pela tardinha, montei na minha bicicleta. Mamãe advertiu:
– Agora você tem que sair de blusa!
Bati o pé e fui para minha derradeira volta de bicicleta com o torso desnudo.
Foi a última vez que o vento escreveu poemas nos seios nus do príncipe.
Que lindo, Fernanda. Quantos sentimentos e emoções.
Angela, foco feliz que você tenha gostado. Beijo.
Fantástico!
Oba!
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