Os impérios morrem quando perdem o poder. Mas ruínas garantem suas memórias. Foi assim com o Império Romano que nos deixou o Coliseu, restos de termas, aquedutos, artes e caminhos. O mesmo para os Impérios Inca e Asteca que brindam olhos contemporâneos com pirâmides, cidadelas, jardins suspensos.
O império de Eny Cezarino (1917-1987) também deixou sinais de sua existência. Ainda tem lugar no nome do trevo, batizado Eny, na entrada de Bauru, a 345 quilômetros da capital paulista. Todavia segue vivo nas recordações de seus frequentadores – putanheiros, políticos, artistas, fazendeiros, jogadores, coronéis, empresários, bons vivants. Assim como povoa as lembranças de suas opositoras: esposas, noivas, Igreja Católica, donas de casa que ralavam no tanque e no fogão.
O Eny’s Bar – foi inaugurado gloriosamente em 1963 e finalizado melancolicamente em 1982. O “palácio do prazer”, como foi chamado por muitos, ocupava área de 12 mil metros quadrados. Contava com quarenta quartos, banheiros, restaurante, bar, sauna, piscina, salões ricamente decorados, jardim de rosas vermelhas. No auge, contabilizou mais de vinte funcionários registrados em carteira e setenta garotas de programa, sendo a maioria inquilinas do bordel.
Sua pista de dança, projetada em forma de violão, era o espaço preferido de Vinicius de Moraes – poeta que nunca escondeu que sua inspiração nascia mesmo era debaixo das saias. Ele confidenciou ao parceiro Toquinho “que a prioridade em Bauru era a casa da Eny”. Que eles podiam até nem fazer o show, mas “deixar de passar na Eny, jamais”. A memória bauruense também registra que era comum avistar helicópteros sobrevoando o bordel. Seus pilotos e passageiros mandavam recados tácitos de que, pela noite, voltariam. Viriam para consumir uísque, sexo, glamour e fantasias.
Essas e dezenas de outras saborosas histórias são contadas por Lucius de Mello, autor do excelente Eny e o grande bordel brasileiro. Trata-se de uma biografia romanceada. Gênero propenso a se equilibrar no fio da navalha. Pois como separar acontecimentos reais dos imaginados pelo autor? Mas Mello saiu-se muito bem no desafio. Ele constrói uma Eny verossímil e pujante. Talvez tenha seguido o conselho de mestres escritores que recomendam: “se você for escrever sobre uma personagem de ficção faça com que pareça real, mas se for biografar uma pessoa real faça com que pareça uma personagem de ficção”.
No livro a jornada de Eny vai num crescendo, envolvendo o leitor com muita sedução. Outra habilidade do autor é trabalhar contextos históricos como suaves panos de fundo. Assim ficamos sabendo do suicídio de Getulio Vargas, no traumático 24 de agosto de 1954, quando a empregada Sebastiana acorda a patroa para dar a notícia. Por sinal, Vargas foi um ídolo para Eny. Ela o havia conhecido em uma recepção no Palácio dos Campos Elísios – então sede do governo paulista, em 1941. A garota de programa se apresentou com “uma saia longa de sede preta, uma camisa branca também de seda, mangas compridas e um colete de veludo negro enfeitado com miçangas”. Vargas elogiou sua beleza e se retirou para o prazer dos conchavos políticos.
Aliás políticos nunca faltaram na vida da cafetina. Mas ela via neles muito mais portas de oportunidades do que preferências ideológicas. Semeava e regava relações com pessoas que considerava importantes. Primeiro, os endinheirados com poder para consumir suas bebidas caras e seu buquê de prostitutas classudas, perfumadas e bem treinadas na arte do sexo e da fantasia. Segundo, os políticos capazes de ajudá-la nos negócios.
Antes de inaugurar o Eny’s Bar, ela trabalhou nas imediações da Costa Ribeiro – zona de lupanares em pleno centro de Bauru. Foi ali que conheceu Nicola Avellone Júnior, o Nicolinha, figura querida entre o mulherio, frequentador do sexo pago desde os seus quinze anos. Pois Nicolinha se candidatou a prefeito – é dele o slogan “Bauru, cidade sem limites” – e depois a deputado estadual. Ganhou as duas eleições. Eny se engajou nas campanhas pedindo contribuições para os clientes mais ricos, instando as garotas a votarem nele: “O voto é uma carta poderosa que temos na manga, meninas. Temos que saber usá-lo na hora certa. Somos putas, vagabundas, como dizem as damas da sociedade, mas somos um colégio eleitoral. Só as mulheres que moram na Costa Ribeiro elegem um vereador nesta cidade. Portanto, meus amores, votem de cabeças erguidas, orgulhosas porque nós todas somos cidadãs brasileiras e merecemos respeito”.
Nicolinha e Eny se tornaram amigos e confidentes de toda vida. Mais tarde, ele ajudaria a amiga nas negociações para compra do terreno que edificaria o grande bordel brasileiro. Também passou pelo salão da lendária meretriz uma dupla famosa: o histriônico Jânio Quadros e o trágico João Goulart. Ambos foram presidentes do Brasil.
Foi em Paranaguá, cidade portuária do Paraná, que Eny soube que trabalhar em Bauru poderia ser uma boa. Silvia, uma recrutadora de prostitutas, explicou que a Pensão Imperial da dona Nair estava precisando de mulheres para dar conta da demanda crescente da cidade. De fato, com a operação da companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, o dinheiro passou a irrigar as terras secas e quentes da região. Em Bauru, ocorria a baldeação para vários ramos da ferrovia. A cidade se expandia em novos negócios. Resoluta, Eny disse adeus a Paranaguá. Na véspera do Natal de 1945, a profissional do sexo pegou o trem na paulistana Estação Júlio Prestes rumo à cidade que a faria rica e onde morreria.
Eny estava com quase 29 anos e levava como provisão dinheirinhos guardados em caixinhas de sabonete. Como na musiquinha infantil “Quem quer casar com a senhora baratinha / Que tem fita no cabelo / E dinheiro na caixinha.” A diferença é que Eny não pretendia ser esposa de ninguém. Precisava de passe livre para vencer na profissão. Antes de Bauru, Eny foi garota de programa em São Paulo, sua cidade natal. Depois, sob a mão firme e exploradora de um cafetão, ancorou no Rio de Janeiro, na época Capital Federal.
Ela frequentou o brilhante Cassino da Urca, aberto em 1933 e extinto pela lei nacional contra os Jogos de Azar, em 1946. No Cassino em frente ao mar, Eny assistiu a shows de Grande Otelo, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Carmen Miranda. Observou o glamour da alta sociedade e anotou o valor do entretenimento na sua cachola esperta. Foi no Rio que Eny teve o grande insight de sua vida: se desvencilhar do cafetão para trabalhar por conta própria e, no futuro, se tornar ela mesma a cafetina.
Finda a temporada carioca, Eny passaria um tempo em Porto Alegre, trabalhando em um prostíbulo na rua Botafogo, partindo depois para a estada em Paranaguá. Mas a estrela de Eny brilharia mesmo em Bauru, onde ela desembarcou numa manhã curiosamente fria. Bateu à porta da cafetina Nair e para ela trabalhou por dois anos, quando dona Nair “vendeu o ponto da pensão e transferiu o contrato de aluguel para Eny”. Finalmente, ela começava sua carreira solo de mulher de negócios.
Aprendeu rápido a lidar com a polícia que fazia blitz para conferir se havia menores de idade na putaria e checar se os exames médicos mensais, obrigatórios para as profissionais, estavam em dia. Eny também mergulhou no contexto da rua Costa Ribeiro, onde os prostíbulos conviviam, quintal a quintal, com casas de família. Era comum mães proibirem as crianças de brincarem no meio da rua. Algumas até tapavam com as mãos os olhos do pimpolho para evitar que ele visse o rosto – e principalmente o corpo – das mulheres de vida fácil, desregrada, pecaminosa.
A tensão entre putas e esposas no centro de Bauru durou anos, com direito até a arranca-rabos. Os opositores diziam ser absurdo que prostitutas desfilassem em pleno coração da cidade que prosperava sem limites. A contenda só seria resolvida em 1963, quando os bordéis foram expulsos para a periferia e Eny inaugurou seu palácio do prazer no trevo de entrada da cidade. Um ano depois, o a Costa Ribeiro, a rua do pecado, trocou de nome por decreto municipal, passando a se chamar Presidente Kennedy, em homenagem ao estadista americano assassinado em Dallas.
Por vários anos, antes do expurgo final, muito champanhe, uísque paraguaio, alguma cocaína e lençóis incendiados rolaram no entorno da Costa Ribeiro. Na Pensão da rua Rio Branco – onde trabalhou desde sua chegada a Bauru – e na Casa do Trevo, Eny se tornou a grande dama dos negócios da sedução. Ela tinha olho bom para mulheres bonitas e com jeito para a coisa. Tinha faro para perceber clientes com dinheiro na carteira e educação no trato. Nunca permitiu que camarada algum entrasse bêbado ou armado nos seus domínios. Intuía que o sexo em si era uma pequena parte da história.
Os homens desejavam mesmo eram as fantasias e o prazer de contar para os amigos que despetalaram uma flor do buquê de mulheres da dona Eny. Dormir com uma daquelas garotas não era dormir com qualquer uma. Elas vestiam roupas da moda, calçavam sapatos feito à mão, perfumavam-se a la francesa. Algumas estudavam, liam livros, sabiam das últimas notícias. Durante o reinado do Eny’s Bar, houve meia dúzia de concubinatos entre as meninas e velhos fazendeiros.
Eny também viveu, por mais de vinte anos, um grande amor. O escolhido foi Maurício Gehara, belo rapaz e jogador inveterado. Romântico, presenteava Eny – sem precisar de ocasião e motivo – com rosas vermelhas. Até que o coração da amada foi espatifado no 16 de janeiro de 1973. Maurício morreu em um acidente de carro na Via Dutra, no mesmo trecho que mataria o ex-presidente Juscelino Kubitschek, três anos depois. Aos 54 anos, ela sentiu o baque e começou a pressentir que outras perdas viriam.
O luto por Maurício, o grande amor, fez Eny mergulhar em recordações. Ela relembrou quando entregava, na Vila Mariana, em São Paulo, marmitas com peixe-frito, arroz, feijão, salada de tomate. Depois que seu pai, José, perdeu o emprego no matadouro municipal, a família composta por seis irmãos se uniu na cozinha. A mãe, dona Angelina, comandava o fogão. Mas Eny detestava entregar marmitas e o cheiro do peixe que impregnava sua pele e grudava no cabelo. Conseguiu emprego numa fábrica de chocolates. Sua tarefa era embalar bombons um a um. Cansou.
Resolveu fugir de casa para escapar da pobreza, da cozinha, da fábrica, do destino óbvio. Deixou um bilhete de despedida avisando: “Estou indo buscar a felicidade.” Para essa moça, felicidade queria dizer grana e poder. Apesar de mandar dinheiro todos os meses, ela só reveria a família muitos anos depois. Com exceção da mãe, pois morreu antes do reencontro. Agora Eny vivia abraçada com o dinheiro e o poder que lhe dava uma vida confortável e também possibilitava que, além de ajudar irmãos e sobrinhos, auxiliasse crianças, idosos, freiras e velhas putas de Bauru.
Se não fosse prostituta, com certeza, teria recebido o título de cidadã bauruense. Suas benevolências dariam para isso. Mas em Eny e o grande bordel brasileiro, Mello não se esquiva em retratar o lado perverso de sua pessoa-personagem. O viés da cafetina exploradora de outras mulheres. A lógica implacável da executiva que enxergava na garota de programa um produto a ser talhado e trabalhado para o lucro.
Eny tinha convicções firmes. Na sua opinião, puta não combina com maternidade, o freguês não queria sentir cheiro de cocô de bebê. Isso ele já tem em casa. Na cama libertina, o homem quer perfume e sonho.
Assim, para cada “inquilina” prenha, ela providenciada um aborto ou o olho da rua. Pagava tudo e levava as meninas para procedimentos seguros. Chegou a combinar com o médico de confiança que esterilizasse as garotas que “insistiam” em engravidar. O detalhe criminoso é que o médico procederia sem o conhecimento das pacientes. Também atuou como aliciadora de mulheres. Preferia procurar suas colaboradoras no sul do país, pois eram mais branquinhas. Fenótipo predileto da maioria dos clientes do seu bordel.
A dona do bordel tinha faro apurado para garotas jovens, vulneráveis e ambiciosas. Desde que bonitas, é claro. Usando como régua sua história pessoal, ela perguntava na abordagem: “Você prefere ganhar um salário-mínimo se esfolando num empreguinho, ou prefere ganhar dinheiro de verdade levando uma vida divertida?” Justiça se faça. Eny nunca se arrependeu de sua opção. Nunca vestiu o véu de vítima. Fez o que bem entendeu.
Mas como todo império acaba, o Eny’s Bar desceu ladeira abaixo. Por culpa de um conjunto de fatores, entre os quais, um contador ladrão e o enxame de motéis onde os homens podiam dormir com as próprias namoradas e noivas agora protegidas por anticoncepcionais. Foi o final da linha para o bordel e para a cafetina.
Ela foi perdendo tudo. Chegou aos 70 anos morando na casa de uma sobrinha e sem dinheiro para pagar o plano de saúde. A pobreza que deplorou quando jovem, a alcançou na velhice. Eny morreu por complicações do diabetes. Como Vargas, que ela tanto admirou, saiu da vida para entrar na história.
ENY E O GRANDE BORDEL BRASILEIRO
Autor Lucius de Mello
Editora Planeta
Ano 2015
Páginas 424
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