Não foi fácil chegar no quilombo dos Calunga na região de Monte Alegre, em Goiás, quase divisa com o estado de Tocantins. Foi preciso uma caminhonete com tração nas quatro rodas, um motorista habituado com o trajeto e protegido por São Cristóvão, padroeiro da categoria.
Cruzamos riachos, beiramos precipícios, levantamos poeira. Um verdadeiro caminho das pedras. Mas valeram os solavancos, os sustos, o desconforto de horas de viagem. O quilombo dos Calunga é lugar lindíssimo. Tem o silêncio da lonjura da cidade e está bem ao ladinho do rio Paranã.
A surpresa não ficou apenas por conta da beleza natural. Ela aumentou quando vimos os habitantes. Todos pretos. Sem mistura. Esguios, com olhos lembrando jabuticabas graúdas. Cautelosos, desconfiam dos forasteiros em geral e dos brancos em particular.
Pudera! São bisnetos e bisnetas de pretos e pretas que, na calada da noite ou na gritaria do meio-dia, fugiram do eito e da senzala. Pretos e pretas que se embrenharam na mata densa e enganaram os ardilosos capitães- do-mato.
Os Calunga de Monte Alegre se esconderam com perfeição. Entre montanhas, fundaram uma comunidade. Conhecedores da agricultura, plantaram. Sabedores de ervas medicinais, se curaram. Cultuadores de ritmos e batuques formaram uma identidade.
Nem tudo é glória
Os Calunga, ricos em cultura, são pobres em bens e serviços. Falta energia elétrica para todos, falta água encanada para a maioria. Com exceção da escola primária, conseguida com muita luta, para eles acessarem qualquer serviço precisam viajar para a pequena Monte Alegre. Se alguém necessita de cuidados médicos é um deus-nos-acuda. Já teve gente que morreu no meio da viagem.
Alguns jovens Calunga deixam o quilombo para tentar a sorte nas cidades. Salvo exceções, a maioria se dá mal. Criados em uma economia de subsistência, se veem excluídos da economia de mercado – selvagem por definição e filosofia. Um ou outro consegue uma ocupação precária e informal, além de experimentarem os ferimentos do racismo à brasileira: nunca assumido, sempre exercido.
Quem conhece bem esta realidade é a dona Procópia. Foi parteira de muitos nascimentos. Por onde ela passa, a gente ouve: Benção, mãe Procópia! É o costume. Quem ajuda a nascer é chamada de mãe por quem foi ajudado. Dona Procópia é líder na comunidade. Aos 72 anos já pegou muita canoa no rio Paranã.
Dona Procópia foi a Brasília. Falou com ministros. Falou com o presidente da República. Disse o quê? O justo. Eu só peço o que é direito nosso. Nem para mais, nem para menos. Peço o que está escrito na Constituição.
E não é que está! A Carta garante aos remanescentes da comunidades de quilombos a propriedade definitiva de suas terras. Dona Procópia conta que a titularidade foi conseguida. A terra é deles. Mas isto não impede a ganância de fazendeiros vizinhos ávidos por tomar o alheio. Não impede o projeto de construção de uma barragem que, se construída, inundará terras calungas.
Nem só de terra
O povo Calunga viveu isolado por séculos. Na segunda metade do século 20, alguém passou pelo quilombo avisando que a escravidão havia acabado. A comunidade recebeu a notícia com pé atrás. Assimilaram a boa nova devagarinho, mas rapidinho descobriram: o sistema escravista se foi, mas o racismo é uma árvore frondosa com raízes profundas. Confirmaram que os brancos seguem dando as ordens.
Os Calunga sabem que sua identidade social e cultural está por um fio. Eles têm medo que a estrada – que leva o mundo até eles – seja o começo do fim. Esta é a tradução de uma frase inesquecível de dona Procópia: Eu tenho medo de que as pessoas sem coração cheguem até aqui e matem toda a nossa gente.
Segundo a Fundação Palmares, o Brasil tem cerca de oitocentas comunidades quilombolas, espalhadas pelo território nacional. A comunidade Calunga de Monte Alegre é só uma delas. A população quilombola é credora de uma enorme dívida social. Precisam do básico: escolas, postos de saúde, água, luz, saneamento.
Nós, os que temos escolas, postos de saúde, água, luz, saneamento, precisamos conhecer melhor a história e a realidade destes brasileiros, cujo maior pecado foi amar a liberdade.