Anton Tchékhov (1860-1904) é autor de contos primorosos, sempre reeditados. Suas peças de teatro, mais de 100 anos depois de criadas, são reencenadas no mundo inteiro.
Nascido em Taganrog, Rússia, o autor sucedeu a uma linhagem literária de fino pedigree, representada por Pushkin (1799-1837), Gógol (1809-1852), Turguêniev (1818-1883), Dostoiévski (1821-1881), Tolstói (1828-1910). Todos gigantes da arte de escrever. A literatura russa do século 19 inspirou a do século 20, com igual força que Hollywood influenciou o cinema do mundo todo.
Nos seus 44 anos de vida, Tchékhov testemunhou e narrou com acuidade uma sociedade em transformação, um país mal saído do sistema feudal e mal entrado na industrialização. Não é à toa que a maioria de suas personagens são os pequenos burgueses, ora nostálgicos de uma velha ordem, ora esperançosos com uma nova época.
Mas Tchékhov não foi de forma alguma um autor interessado em economia ou sociologia. Muito pelo contrário. Seu terreno foi a intimidade das pessoas, aquilo que se diz e que se cala entre quatro paredes. A vida cotidiana com suas aflições comezinhas foi a tinta de sua caneta. O escritor e amigo Máximo Górki (1868-1936) pontuou: Ninguém como Tchékhov mostrou com tão impiedosa lucidez o retrato turvo do cotidiano.
Ele não escreveu simplesmente retratos. Auscultou a vida doméstica flagrando seus quadrantes. Pinçou e dissecou o trágico, o cômico, o grandioso e o mesquinho pululando entre o jardim das cerejeiras e o samovar fumegante. Entre o choro no quarto e a gargalhada na sala. Fez mais: tirou o freio do coração das personagens. Elas jorram suas contradições na frente de todos.
Como poucos escritores homens, ele compreendeu e traduziu o espírito ambivalente das mulheres russas. Por um lado, presas às casas, aos maridos, aos pais e aos irmãos. Por outro, libertas nas imaginações e nos sonhos de uma vida feliz. Em seus contos e peças, elas nunca são apêndices da história ou meros objetos das paixões masculinas. As mulheres opinam e agem.Ser um narrador do doméstico lhe rendeu muitas críticas. Havia quem desejava mais pompa e circunstância, quem demandava heróis inequívocos e modelos morais. Ele retrucava: As pessoas comem, dormem, fumam e no meio disso se destroem.
Também não é verdade que as personagens tchekhovianas são fúteis. Elas filosofam o tempo todo. A graça é que fazem isso em meio ao chá ou à preocupação com o almoço a ser servido. Mais importante do que o que ele conta, é o jeito com que conta.
Passados mais de 100 anos, seus textos seguem causando estranheza. Talvez pela sensação de despretensão absoluta que sua escrita provoca. Os parágrafos não vestem fraques, as frases não se equilibram em saltos altos. A norte-americana Janet Malcolm, biógrafa do escritor, atenta: Ler e reler Tchékhov é uma experiência. Cada frase, cada palavra têm uma força extraordinária. É pura poesia.
Seu compatriota, o escritor Serguei Dovlátoves (1941-1990) fez sua declaração de amor ao mestre russo:
Um escritor pode se postar frente à inteligência de Tolstói. Admirar a elegância de Pushkin. Valorizar as buscas morais de Dostoiévski. O humor de Gógol. E assim sucessivamente. Não obstante, o único a quem eu queria me parecer é a Tchékhov.
Escritor compulsivo
Aos 19 anos, já em Moscou, Tchékhov ingressa na Faculdade de Medicina. Ao mesmo tempo que estuda anatomia, dedica-se à observação das almas. Para ajudar no sustento da família escreve contos aos borbotões. Utilizando pseudônimos vende suas histórias para revistas e jornais. Não se dirige a um público específico, escreve para todos. Vai ganhando dinheiro com suas narrativas curtas e bem-humoradas.
O escritor inicialmente ironiza os aristocratas arruinados, os camponeses vestindo-se de operários, as jovens querendo ser atrizes, os pintores que não pintam, os médicos que não curam, os destinos que não se realizam.
São histórias leves com a intenção de entreter leitores populares. Assim são na aparência. Como bem percebeu o autor de Lolita, Vladimir Nabokov (1899-1977): Os relatos de Tchékhov são histórias tristes para pessoas com humor. É fato. Atrás de uma história banal, há sempre um subtexto mapeando um tema recorrente: a condição humana e suas circunstâncias.
Depois de formado, Tchékhov conjumina o exercício da medicina com o da literatura. Torna-se um trabalhador incansável. Todavia, ainda não levava o escritor muito a sério. Chegou a dizer: A medicina é minha esposa legítima, a literatura é um simples caso.
Mas o sucesso de suas histórias e o estímulo de outros escritores abrem os seus olhos para o próprio talento. Mais importante: aguçam a consciência de trabalhar esse talento. Então ele cresce!
Dos seus mais de mil contos, brilham dezenas de obras-primas. Entre elas, O Monge Negro, O Duelo, A Dama do Cachorrinho, Uma História Enfadonha – que de enfadonha não tem nada e Enfermaria Número 6 – que, dizem, levou Vladimir Lênin (1870-1924) às lágrimas. Tchékhov escreveu também uma narrativa longa, Ilha de Sacalina.
Já com o diagnóstico da tuberculose, que o matará anos mais tarde, empreendeu uma árdua viagem à colônia penal de Sacalina, onde testemunhou o sofrimento cru. O amadurecimento do narrador é acompanhado por reflexões acerca do ofício: Meu trabalho consiste em ter o talento para distinguir um testemunho importante de um outro sem importância. Faço isso para que minhas personagens tenham voz própria.
O Anton maduro aconselha jovens escritores: Deixem que o leitor faça os julgamentos, nosso trabalho é apenas mostrar os elementos. Será? Tchékhov fez muito mais do que mostrar. Seus contos e peças começam como quem não quer nada e, de repente, o leitor ou espectador leva um tapa.
O autor desestabiliza o tempo todo com seus monólogos disfarçados de diálogos, com a densidade fantasiada de desimportância. Um demiurgo organizando nas entrelinhas exatamente o que quer que vejamos. E a gente vê.
No ano de 1887, ele pegou a caneta e escreveu sua primeira peça Ivánov. Foi recebida com aplausos frios e repercussão obscura. Nem ele, nem o público, nem a crítica sabiam que o até então contista iria botar fogo na dramaturgia do Ocidente.
Criador de atmosferas
Sua segunda peça, A Gaivota (1896), amargou o fracasso e saboreou o sucesso no espaço de dois anos. Ao estrear em São Petersburgo, então capital da Rússia, teve péssima recepção. Tchékhov fugiu do recinto empurrado por portentosas vaias e insultos do público. No dia seguinte, os jornais estampariam: A Gaivota caiu.
Foi golpe tão duro que ele retornou a Moscou jurando não mais se meter com a dramaturgia. Mas eis que entra em cena Konstantin Stanislávski (1863-1938), futuro autor de um dos mais famosos métodos de interpretação e até hoje leitura obrigatória para os profissionais das artes cênicas.
Stanislávski e Nemiróvitch-Dântchenko (1859-1949) haviam acabado de criar o Teatro de Arte de Moscou e insistiam na montagem de A Gaivota. Tchékhov ainda dolorido relutava. Por fim, cedeu. A Gaivota teve uma acolhida irrepreensível e foi um marco para a arte teatral moderna.
O Teatro de Arte de Moscou, cujo símbolo passou a ser uma gaivota, montaria todas as peças de Anton Tchékhov: Tio Vânia, As Três Irmãs, O Jardim das Cerejeiras. Inclusive Olga Knipper (1868-1959) uma de suas mais célebres atrizes se casaria com o autor.
Apesar das escaramuças entre Tchékhov e Stanislávski, a parceria foi um maravilhoso encontro de um jeito de narrar diferente com uma forma de encenar também diferente. Essas cabeças estavam dispostas a arriscar. De alguma maneira, intuíam que seus trabalhos varriam muito bololô acumulado.
Desafinaram o coro das mesmices que se acomodaram em jeitos convencionais de dramatugiar e de encenar. Era preciso coragem para escrever e pôr no palco peças que desdiziam o cânon teatral. Nada no teatro de Tchékhov reza na cartilha: nem a trama, nem o desenvolvimento, nem a construção do clímax.
Ele convida o espectador a dar tratos à bola, a imaginar o que não é mostrado em cena, a interpretar o silêncio entre os diálogos. Obriga o público a se acostumar com pessoas comuns vivendo vidas também comuns.
Em suma, leva a plateia a se olhar no espelho. Em sua dramaturgia, mais importante do que a explicitação é a atmosfera. As rupturas vão aparecendo sutilmente. Como na vida “real”, ninguém é exatamente bom, ninguém é perfeitamente mau.
Há também maestria no manejo do tempo e na constituição interior das personagens. Não será por outra razão que Irina, Macha e Olga, as três irmãs, seguem vivíssimas nos palcos de hoje. Aparentemente são mulheres na virada do século 19 para o século 20, mas na essência são nossas contemporâneas com seus desesperos e suas esperanças.
Essa atualidade que não envelhece é a chave da permanência de Tchékhov. Como ele conseguiu? Talvez porque tirou a gordura e mostrou o esqueleto. Ou quem sabe, ao tirar a máscara escancarou todo o resto.
Brinde: Ruffato recomenda Tchékhov
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“Não é à toa que a maioria de suas personagens são os pequenos burgueses, ora nostálgicos de uma velha ordem, ora esperançosos com uma nova época.” Brilhante.
Jorge, meu querido!