Faz trinta e dois anos que os dedos de Julio Cortázar (1914-1984) não pousam na sua portátil Olympia Traveller de Luxe. Mas suas histórias surpreendentes e maravilhosamente bem escritas continuam libertando velhos e novos leitores.
Dezembro de 1983: quarenta e oito horas depois da queda da ditadura militar argentina, um homem magro, com dois metros de altura, desembarcava no Aeroporto Internacional Ezeiza de Buenos Aires. Ele havia passado dez anos sem voltar ao país do tango, por conta do regime que deixou milhares de mortos e desaparecidos. Seu objetivo era revisitar pessoas, esquinas e o porto que tanto amava.
Apesar de famoso e cultuado no mundo inteiro, não mereceu acolhida oficial do novo governo de Raúl Alfonsín. Mas deu autógrafos para admiradores que o reconheciam nas ruas. Passados dois meses, já em Paris, morreria de leucemia. No leito do hospital, o último verso corrigido para o livro: Negro o 10 dizia: Tua sombra espera depois de toda luz. De fato, não faltou iluminação na vida de Julio Florentino Cortázar.
Um dos mais lúdicos escritores latino-americano nasceu em Bruxelas, cresceu em Buenos Aires, amadureceu em Paris. Cidadão da imaginação, fez do jogo seu método principal de trabalho. No romance Jogo da Amarelinha (Rayuela), publicado em 1963, o leitor é convidado a escolher sua própria ordem de leitura. Eu escrevi o romance sem saber muito bem de onde partia e para aonde iria. Deu certo, Jogo da Amarelinha o consagrou e rendeu traduções para várias línguas.
Os mais apressados não pensem que a escrita de Julio Cortázar, por levar muito a sério o acaso, brotava por geração espontânea. Ao contrário, em toda a sua obra há uma estrutura muito bem urdida. Ele se valia da precisão técnica para fazer saltar sua invenção sem fronteiras. Sabia como emparelhar substantivo e adjetivo, onde pôr a palavra exata para fazer emergir o sentimento mais recôndito. Como amante da música, particularmente do jazz, movimentava as frases com desenvoltura e ritmo admiráveis.
Cortázar tinha 35 anos quando atravessou o Atlântico rumo à Europa. Já havia publicado Bestiário, livro de contos que traz o magistral Casa Tomada – no qual irmão e irmã são expulsos da casa onde passaram toda a vida por invasores “invisíveis”. O ano era 1951, o argentino foi trabalhar como tradutor para a Unesco em Paris. Aliás, seguiu traduzindo por toda a vida. Senhor do espanhol, proficiente em francês e inglês, por sua Olympia passaram Allan Poe, Daniel Defoe, André Gide, Marguerite Yourcenar, Marcel Aymé.
Paris era então a meca dos escritores hispano-americanos, a máquina cortazareana de inventar e encantar seria azeitada por caminhadas nas margens do Sena, por paradas nos cafés do Quartier Latin, por milhares de cigarros Gitane e pela memória fulgurante da Argentina perdida.
Definitivamente ele seria o escritor-ponte entre a Europa e a América Latina. Aquele que nos familiarizou com o metrô parisiense e mais tarde, ao integrar o boom de autores hispano-americanos, revelou aos espanhóis, franceses e ingleses que tínhamos algo mais do que pampas e frutas exóticas.
Também foi o oráculo literário da deliciosa insubordinação dos anos 60/70, quando a juventude tomou para si as rédeas da mudança. Como poucos escritores, Cortázar compreendeu o espírito do grafite: Sejamos realistas, peçamos o impossível. Alguém já disse que ele nos fez livres e felizes ao mesmo tempo. Para seus jovens leitores do Cone Sul, coincidentemente amordaçados por ditaduras militares, os textos de Cortázar funcionavam como ativadores de sonhos e possibilidades.
A química entre Julio e a juventude leitora foi entendida por ele da seguinte maneira: Os jovens gostam dos meus textos porque eles não dão lições. Os adultos aceitam certas lições, os jovens não. O fato é que Final de Jogo, As Armas Secretas, Histórias de Cronópios e Famas, Todos os Fogos o Fogo, A Volta ao Dia em Oitenta Mundos, 62, Modelo para Armar, Último Round, Prosa de Observatório, Octaedro, Fora de Hora, entre outros, não são apenas títulos de romances e de livros de contos. São cartas de um fascinante Tarô literário.
Julio Cortázar não fazia jogos de linguagem, ele jogava o tempo todo com a realidade. Demonstrou que era possível tirar as amarras das aparências, enxergar através das paredes erguidas por uma visão burocrática da vida. Assim, seus textos nos ajudam a perceber originalidade no comezinho: fazer da ida à esquina uma aventura. Nos dá instruções para a disponibilidade.
O leitor que embarca na estação Cortázar tem a garantia de que verá de forma diferente paisagens conhecidas. Para ele, a liberdade era a prova dos nove. Outra mágica, foi transformar o leitorado em cúmplice de suas personagens. Todos podemos ser cronópios ou famas, Magas ou Oliveiras, Anabéis, Brunos, Johnnys. Podemos até ser Julio Cortázar tomando um trago no Deux Magots em Paris, ou no Café Richmond em Buenos Aires.
O escritor configurou um mapa geoliterário: da França fez seu quarto de trabalho, da língua espanhola sua ferramenta perfeita, da América Latina o porto de onde partia, chegava, partia. Contrastando com a maioria dos autores latino-americanos de sua geração, a política como tema explicitado, demorou para virar assunto nas suas histórias. Depois de uma viagem a Cuba, recém-revolucionária, ele escreve o conto Reunião, que tem Che Guevara como personagem. Mas é com o Livro de Manuel, 1973, que seu comprometimento político é protagonizado. Inclusive os direitos autorais de Manuel foram doados aos grupos chilenos que lutavam contra Augusto Pinochet.
A entrada de temas políticos não engessou sua literatura. É ele quem esclarece: Quando escrevo um conto falando dos desaparecidos políticos na Argentina, utilizo o mesmo critério literário com que escrevo outras histórias. Julio, o libertário, não caiu nas armadilhas dos sectarismos. Para ele, institucionalizar as revoluções era decretar a sua própria morte. A ideia cortazareana de revolução amalgamava justiça social e liberdade de comportamento. Por sinal, rechaçou ações machistas e homofóbicas de alguns militantes cubanos e nicaraguenses. Ele acreditava que senso de humor, flexibilidade do olhar e poesia eram instrumentos legitimamente revolucionários.
Quase setentão, Cortázar empreende com sua companheira e escritora Carol Dunlop uma viagem autenticamente surrealista. Vão de Kombi pela estrada Paris-Marselha com a obrigação de algumas paradas por dia. A viagem, que leva menos de doze horas, durou trinta e três dias. Nas paradas “obrigatórias”, eles cozinhavam, liam, ouviam música e, sobretudo, escreviam. Desse jogo-viagem nasceu, a quatro mãos, o livro de textos-retalhos Os Cosmonautas da Autopista – publicado um ano depois do falecimento de Carol e um ano antes da morte de Julio. Ainda teria fôlego para publicar Nicarágua tão Violentamente Doce e Salvo o Crepúsculo.
O belga-argentino-francês-universal foi um autêntico artesão das letras. Ele acrescentaria das letras sem terno e gravata. Seus leitores gritariam em coro das letras que fazem conhecer e voar. Depois de tudo, para o bem e para o mal, ele foi um escritor para escritores. Para o bem, ele provou que a matéria-prima da Literatura é o texto bem escrito. Para o mal, ele deu margem a centenas de imitadores que embarcaram na onda do fantástico sem rigor.
Cortázar foi também um excelente crítico. Tinha uma refinada consciência das diferenças narrativas entre o conto e o romance. Apreciador do boxe, criou uma definição antológica: Um romance se ganha por pontos, um conto se ganha por nocaute. Ele foi um campeão nas duas modalidades. Seu segredo? Nunca admitir uma clara diferença entre escrever e viver.
Olá,
Fernanda que belíssima história. Parabéns pelo site, gostei desta evolução.
Eu estou lá no Medium e o link está disponível na bio do Twitter.
Um enorme abraço e até breve querida. Beijo
Erik, saudade. Fico muito feliz quando você aprecia o que eu escrevo. O site foi uma feliz ideia de juntar os diferentes textos, de diferentes épocas, eu um lugar só. É um abre-gaveta geral além de um canal para novos textos. Obrigada e beijos.
Oi Fe, ainda tenho um Cortázar que herdei da sua biblioteca nos idos 2003, 2004. Gostei muito do texto e quem sabe vou conhecer o Deux Magots agora com a Iris. Beijos.
Ah! O cachorro da foto lembra muito o nosso Chiquinho.
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