Mais uma escrita automática misturada com cadáver esquisito. Duas técnicas surrealistas que eu e a Marilda Carvalho aprendemos e praticamos na nossa juventude, nos corredores da Escola de Comunicações e Artes da USP e no grupo Viajou sem Passaporte. Ademais os surrealistas levavam muito a sério o lúdico na escrita. Estou torcendo para que a leitura seja também prazerosa
Fernanda Pompeu
Está vendo ali em frente? Pois era uma estação de trem. Construída no melhor estilo inglês. Dizem que o ferro, e até os tijolos, vieram em navios da Grã-Bretanha. A embarcação atracava no porto de Santos e subiam o material no lombo dos burros. Acredita não? Mas foi. No saguão da grande estação havia um relógio-carrilhão. A escadaria era de mármore comprado na Itália. Tudo muito chique. Agora a grande sensação era um aquário. Este ficava à esquerda da entrada principal. Uma belezinha. Tinha gente que entrava na estação só para admirar os peixinhos. Se eu vi tudo isso? Não! Quando eu nasci a estação já era esse nada que você está olhando.
Marilda Carvalho
Eu olho na faixa cinza e marrom da beira-mar onde o azul fica pra trás. E me aborreço. Hoje o dia está pro cão. Vi tanta gente miúda, barriguda, peituda, feia. Até as pombinhas me pareceram tristemente vira-latas na sua mendicância pelo milho cozido que a gente, os outros, deixa na areia da praia. Acho que a desavistação, esse jeito de ver o feio, começou com o papo com as Margaridas, aquelas mulheres que limpam a praia logo cedo. Nos encontramos ao pé da cadeira da salva-vidas e o papo foi sobre como as pessoas jogam tudo no chão. Nesse espaço livre, público, generoso, elas cospem. Foda-se. Nada mudou. A polícia entrou com a camionete na areia. A prefeitura tirou os saquinhos de lixo azul distribuídos antes. Eu não sou responsável. Eu meto o pé na jaca.