Esta é uma história de um unicórnio, mas antes quero contar como eu a escrevi. Em 2004, fiz uma viagem à bela Veneza em companhia de três inestimáveis amigas: Márcia, Marina e Régine. Bolamos uma brincadeira, a cada dia uma de nós escolhíamos um passeio. Um deles foi a Murano, coladinho a Veneza. Pegamos o vaporetto logo cedo e fomos para a cidade dos vidros. Na volta, abri meu caderninho e escrevi essa história de unicórnio. Imaginei que estava escrevendo para crianças. Uma coisa rara na minha vida de escritora, pois sempre escrevi para adultos. O Unicórnio de Murano veio inteiro e é desse jeito que o publico aqui.
Como nasceu o Unicórnio
O fazedor de vidro aprendeu sua profissão com o pai, que aprendeu com o avô, que aprendeu com o bisavó, que aprendeu com o tataravô. Assim eram os vidraceiros da graciosa Murano, no norte da Itália.
Bem verdade que Murano não tinha a pompa de sua vizinha Veneza – cheia de palácios, canais, barcos iluminados. Em Veneza, nasceu o grande compositor Antonio Vivaldi. Não em Murano. Mas Murano tinha algo único, só dela, a arte de fazer vidros.
O fazedor de vidros tinha uma pequena oficina e trabalhava com dois ajudantes-aprendizes, seu filho e sua filha. Davam duro. Ele e os filhos faziam bichinhos maravilhosos e delicados. Se inspiravam em bichos de carne e osso: coelhos, gatos, serpentes.
Uma manhã, o fazedor acordou triste e cansado. Disse para os filhos: Guido e Gina, hoje vocês vão assumir a oficina. Ficarei em casa descansando. Confio em tudo que já ensinei a vocês.
Gina e Guido ficaram felizes com a confiança do pai. Contentes, começaram a soprar o vidro e levar as peças para o forno. Fizeram uma linda serpente amarela e um gato multicolorido. Quase no final da jornada, Gina teve uma ideia: E se a gente fizesse um unicórnio?
Guido respondeu temeroso: O pai não ensinou a gente a fazer unicórnios.
A menina então explicou para o irmão que seria fácil: Basta a gente fazer um cavalo e acrescentar na cabeça dele um único chifre.
Como Guido seguisse temeroso, Gina acrescentou: A gente faz o unicórnio e leva de presente para o papai. Ele ficará orgulhoso com a nossa criação.
Os dois irmãos puseram mãos à obra. Mas seja porque estavam cansados, seja porque se distraíram, o unicórnio saiu com uma das patas mais curta. Não tinha jeito de colocá-lo de pé. Com medo de mostrar um trabalho imperfeito, jogaram o pobre unicórnio na lata de lixo.
O Unicórnio vai para o Japão
Então, o unicórnio manco passou dias dentro da lata de lixo em uma calçada de Murano. Até que um gato, atrás de comida, derrubou a lata e o unicórnio rolou para a calçada.
Rarume, uma garotinha japonesa – que estava viajando com os pais, encontrou o unicórnio: Oh que bonitinho!. Vou levar para minha casa.
Daí ela tentou várias vezes pôr o unicórnio em pé. Não teve jeito, a perna mais curta não deixava. Vou cuidar dele, disse Rarume e o beijou.
De volta a Tóquio, Rarume mostrou na escola o unicórnio de Murano. Todos acharam lindo.
Deixa eu pegar!
Não. É de vidro. Pode quebrar.
Durante muito tempo, Rarume exibiu o unicórnio para toda a gente. Mas, como acontece sempre, ela cresceu. Daí colocou todos os brinquedos no fundo do armário. Entre eles, o unicórnio de Murano.
Até que um dia a família de Rarume foi morar em Hiroshima. Na mudança, esqueceram o unicórnio no fundo do guarda-roupa. Meses se passaram até que uma família brasileira alugou o apartamento.
O unicórnio consola Ronaldo
Ronaldo, filho caçula, sentiu muita tristeza em deixar seus amiguinhos no Brasil. Por não falar japonês, ele teve dificuldade em fazer novos coleguinhas. Uma noite de tempestade, ele encontrou, no fundo do armário, o unicórnio de Rarume. Se tornaram grandes amigos. Quando ele ficava muito triste, conversava com o unicórnio, quando estava muito feliz também.
Depois que Ronaldo cresceu, ele não falou mais com o unicórnio. Mas como gostava muito dele, guardou, como um talismã, numa caixinha especial.
Formado em Engenharia Mecânica, Ronaldo voltou para o Brasil. Casou-se e teve um filho, o Igor. Quando Igor fez cinco anos, Ronaldo deu o unicórnio para ele.
Igor brincou um tempo com o unicórnio. Mas como tinha muitos brinquedos e o unicórnio não parava mesmo em pé, ele o guardou no fundo de uma gaveta escura.
Passaram-se muitos anos. Igor já era grande e queria comprar uma guitarra. Como precisava juntar dinheiro, resolveu vender todos os seus brinquedos para uma loja de antiguidade.
Lucíola encontra o unicórnio
Por outros tantos anos, o unicórnio de Murano ficou esquecido em uma prateleira no fundo de uma loja em Sampa. Até que um dia, Lucíola, uma mulher estilosa e excêntrica comprou o unicórnio.
Lucíola reparou no defeito da pata curta, mas não se importou. Pôs o unicórnio dentro das bolsa que também tinha: chave, pente, celular, contas para pagar e, agora, o unicórnio.
No mês seguinte, Lucíola pegou o avião para passar férias na Itália. Passou por Roma, Pádua, Milão e foi conhecer os vidros de Murano. Gostou da cidade e de tudo.
Ao esperar o vaporetto rumo a Veneza, teve uma forte ventania. A bolsa de Lucíola caiu aberta e o unicórnio quase foi parar dentro da água. Aflita, ela recolheu o que pôde, mas não viu o unicórnio.
O unicórnio volta ao começo
Num cantinho da ponte, o unicórnio ficou semanas despercebido. Até que, numa manhã, Sofia – diretora do Museu do Vidro de Murano –, grande estudiosa de vidros, o encontrou. Ela logo percebeu que o bichinho tinha muito valor. Era antigo e havia sido feito por mãos de artistas.
Ela então convocou uma junta de especialistas internacionais. Todos concordaram que aquele unicórnio tinha muito valor e o mundo merecia vê-lo. Houve muitos ohs! de verdadeiro entusiasmo.
Sofia criou no Museu do Vidro uma sala especial. Fizeram um pedestal também especial para equilibrar o unicórnio. Também providenciaram um holofote especial para iluminar uma placa onde estava escrito: O Unicórnio Encantado.
Assim, depois de muitos donos, muitos armários, muitas gavetas. Vários encontros e desencontros, o unicórnio voltou para Murano e passou a ser uma celebridade.
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Muito encorajador! Salutar mesmo. Para que pensemos o quanto a justiça da inteligência nos faz mais próximos da justiça de Deus.
Regina Palombo, bom dia! Bem legal você ter enxergado justiça nessa pequena história. E tem mesmo. Obrigada pela leitura. Sempre.
Fernanda, fiquei imaginando um livrinho lindamente ilustrado com esculturas de papel. Ficou muito bom este seu texto. Parabéns!
Nossa, imaginou bem! Beijo, Tereza. Obrigada pela leitura.
Un cuento redondo como el viaje del unicornio patojo
Redondo e livre, né? Valeu, Gloria querida.
Onde estava essa linda história até você publicá-la hoje? Delícia! Levei!!
Cida querida, ela estava no fundo de uma gaveta (como o unicórnio). Beijo, querida.
Que lindo.Como disse Tereza, acima, minha imaginação foi longe, e vi o Unicórnio ilustrado em um belo livro! Que riqueza!
Cidinha, fico muito feliz. Sim essa história pede pra ser ilustrada. Quem sabe, um dia, alguém se habilitará. Eu adoraria. Obrigada pela leitura e volte sempre.