Toda mulher tem um pouco de feminista. Mesmo que abomine o nome, mesmo que não tenha lido sequer uma linha de Simone de Beauvoir (1908-1986) e não faça a mínima ideia da importância da professora Heleieth Saffioti (1934-2010). Talvez a maioria nem saiba dos sutiãs queimados em 1968, ou do Lobby do Batom durante a Assembleia Nacional Constituinte (1986-1988).
Hoje, muitas jovens acham normal e banal votar, ser eleita, tomar chope desacompanhada, cursar uma faculdade, fazer tatuagens. Também viajar, morar sozinha, namorar, fazer escolhas sem precisar da autorização do pai ou do irmão. Se autorrepresentar.
Mas para que a maior parte das mulheres possam fazer tudo isso, feministas foram à luta, às ruas, aos jornais, às tribunas. Houve até as que foram parar atrás das grades. E algumas delas estudam o próprio movimento feminista para tecer suas teorias.
O livro Feminismo e Política, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, nos introduz nas várias teorias que tentam iluminar a caminhada feminista, particularmente as que se ocupam dos anos 1970 até esta segunda década do século 20. Os autores fazem um rodízio de capítulos com o mérito de conectar os temas, alcançando uma unidade de sentido satisfatória. Na verdade, conseguem mais do que isso.
Feminismo e Política mostra o quanto o feminismo é pujante em ousadias e contradições. Quanto mais ligada à vida, mais interessante se torna a teoria. E não falta vida às feministas. Há também boas pitadas de História. Por exemplo, o registro de que o feminismo nasceu branco, de classe burguesa, urbano. Por conta disso mulheres pobres, negras, trabalhadoras compulsórias, demoraram para se reconhecer nas bandeiras que reivindicavam autonomia em relação aos homens.
A própria esquerda, a clássica, que tão bem enxergou a força política da luta de classes, teve muitíssima dificuldade em compreender o que as mulheres queriam. Por décadas seguidas, os homens de partidos e sindicatos preconizavam que a exploração e o aviltamento das mulheres desapareceria quando desaparecesse a burguesia e o sistema capitalista fosse superado.
Mesmo países que ensaiaram algo próximo ao socialismo também não lograram a equidade entre homens e mulheres. Algumas feministas socialistas até tentaram e avançaram em direitos das mulheres, mas o resultado ficou aquém de uma sociedade realmente justa no tocante a homens e mulheres.
Quando na década de 1990 o conceito de gênero é populatizado, faz-se um clarão na divulgação das ideias feministas. Compreendeu-se que o gênero – feminino e masculino – é construção histórica e política. Ele nada tem a ver com o sexo biológico das pessoas. Não se nasce mulher ou homem. Se torna mulher, se torna homem.
Outro passo importante se deu com o conceito de relações de gênero, evidenciando o quanto o privilégio do masculino se sustenta no sacrifício do feminino. Para eles: tempo maior para o estudo, a profissão, o lazer. Para elas: migalhas de Cronos. Pois há a maternidade, o cuidado com a casa e com os filhos pequenos, a atenção aos idosos, além da falta de prática com os ritos do espaço público. Foi o movimento feminista o primeiro a desnudar a lógica de um mundo comandado pelos homens.
Mas o amadurecimento do pensamento feminista veio para valer no momento em que as contradições afloraram no seu interior. Por exemplo, no Brasil, ocorreu quando feministas negras apontaram o dedo para feministas brancas. Demonstraram que não existia a categoria mulher solta no espaço. Mulheres brancas e negras são herdeiras de circunstâncias distintas e, muitos vezes, conflitantes.
A vida como ela é: mulheres, de maioria branca, saem para seus trabalhos e para a ascensão profissional, deixando em casa trabalhadoras domésticas, de maioria negra, cuidando da sala, banheiro e cozinha. Estas, sem nenhum plano de carreira no horizonte. Da mesma forma que na vida pública e empresarial, a ascensão de algumas mulheres não abre caminho direto para as outras.
O Brasil, de 2010 a 2016, teve uma mulher na Presidência da República, mas segue muito baixo, em todos os poderes, o número de mulheres em cargos de decisão. Tais contradições, no lugar de matar o feminismo, o tornam fundamental para a vida das mulheres e para a democracia.
Flávia e Miguel também citam no livro conquistas e vitórias evidentes. A mulher do século 21, na maior parte dos países, é sujeito de direitos. Tem direito à propriedade privada, ao mundo político e a exercer – com certa liberdade – suas subjetividades. Também – com exceção do não direito a abortar em muitos países – é senhora de seu corpo.
Ainda que muito distante do pódio das benesses masculinas, também já vai muito longe a mulher criança, tutelada por pais, irmãos, maridos. O número crescente de creches, o acesso ao ensino superior e a legislação preferencial ajudam bastante. Haja vista a criação, em 2003, da Secretária Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Bem como a Lei Maria da Penha, vigente desde 2006.
É fato que o avanço na legislação e a melhoria na percepção social, não se traduziram, até agora, na diminuição significativa da violência doméstica, notadamente praticada por companheiros e ex-companheiros. Por sinal, e infelizmente, ser vítima da violência doméstica é ponto comum para um número impressionante de mulheres em qualquer parte do planeta e independentemente do nível de escolaridade e da classe social a que pertençam.
Feminismo e Política traz questões de fundo atuais e complexas não apenas para o feminismo, mas também para outros movimentos sociais. Exemplos: a tensão entre a universalização e particularização de direitos. A impessoalidade da Justiça e as vulnerabilidades específicas. O multiculturalismo e os direitos humanos das mulheres.
O livro também resenha as teorias feministas acerca de temas polêmicos, como aborto, pornografia, prostituição. Temas que fornecem munição pesada para o antifeminismo. Apesar desses temas envolverem diretamente o corpo e a imagem das mulheres, as religiões e a direita conservadora se apropriam dessas questões como se fossem seus quintais. Defendem o feto como indivíduo e moralizam o sexo pago e fantasioso.
As feministas não são unânimes na aprovação ou desaprovação dessas práticas, mas sempre põem a mulher no centro da discussão. Mais do que isso, empurram a vida cotidiana para a pauta política. Fazer da mulher protagonista da própria vida foi um dos primeiros anseios do feminismo. O que elas ainda querem? Tudo.
As divergências dentro do movimento são motivo de fortalecimento, pois o reinventa e o atualiza a todo momento. Em uma vertente radical, as donas de casa foram diminuídas, enquanto mulheres profissionais eram enaltecidas. Chefes duronas eram mais admiradas do que chefes suaves. Em certo sentido, o modelo masculino culturalmente construído – autoritário, viril, impessoal – parecia o caminho a ser percorrido pela mulher independente.
No entanto hoje, sob o impacto de um mundo em ebulição e detonador de certezas, o feminismo parece retomar sua origem vigorosa que defendia a autodeterminação de cada mulher. Que cada uma possa ser o que quiser. Assim há espaços para mães 24 horas, donas de casa, mulheres que não querem filhos, cozinheiras e comandantes de avião.
É evidente que as correlações de poder não mudaram tanto quanto o desejo das feministas. Profissões abraçadas pela maior parte das mulheres valem menos no mercado. A maioria sofre a dupla jornada de trabalho. Donas de casa contam com pouca colaboração dos companheiros. Mas, não há dúvida, o feminismo segue causando mal-estar no status quo.
Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel são estudiosos das conexões entre feminismo e política, o livro deles joga luz sobre as interseções privado-público, pessoal-político, particular-universal, feminino-masculino, casa-mundo. De quebra, eles pincelam o pensamento-chave de mais de uma dezena de teóricas feministas. Ajudam a leitora, e o provável leitor, a enxergar as urdiduras que sustentam um dos mais vigorosos movimentos da contemporaneidade.
FEMINISMO E POLÍTICA – UMA INTRODUÇÃO
Autores Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel
Editora Boitempo
Ano 2014
Páginas 164
Publicado originalmente na Revista Retrato do Brasil