Salvador Dalí (1904-1989) teve os bigodes mais famosos do século XX. Amado e odiado, festejado e insultado. Jamais ignorado
Figueres, na Catalunha, garantiu seu lugar na história porque lá nasceu um dos maiores artistas do século XX. Talvez não se tenha notícia de uma personalidade pública tão provocadora. Em sua longa vida e vasta obra, Salvador Felipe Jacinto Dalí agradou e desagradou com igual intensidade.
No entanto, simpatias e antipatias à parte, Dalí é a tradução perfeita de um século que assistiu a duas guerras mundiais, duas bombas atômicas, ascensão e queda de movimentos, muros e revoluções. Em suma, um século no qual o sim e o não compaginaram. Os biógrafos coincidem em que Dalí nasceu com o dom. Adolescente pintava vigorosas paisagens da região da tramontana e já afirmava: Serei um gênio, talvez incompreendido, mas serei um gênio.
Aos dezessete anos, passou nos difíceis exames da Escola de Belas Artes de San Fernando, em Madrid. Foi expulso, dois anos depois, por insubordinação. Morador da Residencia de Estudiantes tornou-se amigo de Luis Buñuel (1900-1983) e de Frederico Garcia Lorca (1898-1936).
Dalí tinha apenas vinte e um anos quando da sua primeira exposição individual em Barcelona. De cara, chamou a atenção de dois gigantes, espanhóis como ele, Joan Miró (1893-1983) e Pablo Picasso (1881-1973).
Um ano depois dessa exposição, Salvador Dalí pegou o trem para Paris – a então capital da arte ocidental. Seria seu batismo de fogo no círculo de vanguardas artísticas – que acima de tudo experimentavam e discursavam.
O delírio produtivo
Pergunte às pessoas, em qualquer lugar do mundo, quem foi Salvador Dalí? A resposta virá invariável: Um pintor surrealista. Mesmo que poucos saibam sobre manifestos incandescentes, associações inusitadas, automatismos aplicados à gênesis criativa. Mas sabem dos relógios moles, dos elefantes com pés finos, nuvens de telefones voadores, da imaginação desenfreada. As pessoas intuem Dalí.
Criador do método paranóico-crítico que, grosso modo, baseava-se “na objetivação crítica e sistemática das associações e interpretações delirantes”, Dalí irá plasmar suas famosas imagens duplas, quando a imagem de um cavalo é ao mesmo tempo a imagem de uma mulher.
O grupo de surrealistas, capitaneados por André Breton (1896-1966), apaixonou-se pela arte e personalidade dalineanas. Deu tão certo que Salvador chegou a assinar manifestos contra a vida burguesa e o público idiota. Mas tempos depois André e Salvador divergiriam.
Os surrealistas aproximaram-se da política partidária, trocando a revolução surrealista pelo surrealismo a serviço da revolução proletária. Em 1938, Breton chegou a elaborar com Leon Trotsky o famoso manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente. O grupo surrealista ficou sério e Dalí acabou solenemente expulso.
O que não impediu o pintor de afirmar até o fim: A diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou surrealista. Salvador não era nenhum anjinho: fez ambíguos elogios a Hitler, pintou Lênin com uma bunda enorme sustentada por um estilingue, no quadro O Enigma de Guilherme Tell .
Nessa época, a maioria acachapante dos artistas e intelectuais eram de esquerda. Enfureceram-se com as declarações e os gestos do outrora companheiro que, inclusive, havia desenhado cartazes para o Partido Comunista Francês.
Joan Miró, republicano e exilado, antes entusiasta do artista de Figueres, declarou: O caráter de Dalí nunca esteve à altura de seu talento. Décadas depois, referindo-se às palavras de Miró, Dalí retrucaria: Ele zangou-se comigo porque numa exposição conjunta em Nova York, minha sala estava cheia de público e a dele às moscas.
Assim era Dalí. Superlativo, construtor do próprio mito. Ele soube como ninguém que a imagem era a essência e o escândalo, o circo das massas. Também foi um artista total. Meteu-se com fotografia. Escreveu livros de ficção, ensaios, diários.
Namorou o cinema, roteirizou os clássicos Um Cão Andaluz e L’age D’or , ambos dirigidos por Luis Buñuel. Desenhou a sequencia do sonho de Gregory Peck em Quando Fala o Coração, de Alfred Hitchcock. Nessa mesma época trabalhou com centenas de desenhos para um filme em parceria com Walt Disney. O projeto ficou engavetado até o ano de 2000, quando Roy Disney retomou o trabalho. Destino, um curta de sete minutos, ganhou prêmios internacionais.
Uma mulher
Quando Gala (1894-1982), de certidão de nascimento Elena Diakonova, viajou para Cadaqués acompanhada do marido e poeta Paul Éluard (1895-1952), não imaginava estar indo ao encontro do amor de sua vida. Para fazer-se notar por ela, segundo a memória do amigo Pauwels: Dalí raspou as axilas e pintou-as de azul, lambuzou-se com cola de peixe e excremento de cabra. Funcionou. Gala teria dito: Querido, nunca vamos nos deixar. Viveram juntos mais de meio século.
A união desagradou a muitos. Começando pelo pai de Dalí que ficou anos sem falar com o filho. Continuou com vários amigos do artista que acusaram-na de controlar demasiadamente a vida e as finanças de Salvador.
Os críticos de arte também torceram o nariz para a obsessão do pintor pela mulher. Um deles reclamou: Nos quadros de Dalí todas as mulheres têm o rosto de Gala. Dalí foi mais longe: colocou a amada no lugar de Cristo, no quadro O Sacramento da Última Ceia.
Opositores ignorados, o catalão passou a vida declarando seu amor incondicional pela russa que, segundo ele mesmo, salvou-o de masturbações solitárias, terrores infantis e ditou o caminho das pedras para sua produção disciplinada e a escalada financeira.
Juntos embarcaram para Nova York em 1934. A estada duraria nove anos. Na capital do capital, Dalí aperfeiçoará a figura de excêntrico genial. Também irá expor seu quadro A Persistência da Memória, cult surrealista, eternizando os seus relógios moles.
Perto de morrer, Dalí afirmará: Não importa se os relógios são moles ou duros, o que importa é que eles deem a hora certa. Foi em NY também que ele revelou-se pop, ao introduzir uma garrafa de Coca-Cola no quadro Poesia da América. Prodígio, um artista pop que sabia desenhar como um clássico!
Ganhou fama e muito dinheiro. Breton aproveitou para chama-lo de Avida Dollars. Dalí respondeu pintando a A Apoteose do Dólar e fazendo digressões esotéricas, dizendo-se um alquimista cujo destino era transformar tudo em ouro.
Ao retornar à Espanha, irá irritar ainda mais os críticos de arte e a intelligentsia. Volta-se obsessivamente para os clássicos. Tece elogios ao generalíssimo Francisco Franco (1892-1975), que mergulhou o país nas trevas do fascismo. Declara-se monarquista e católico apostólico romano. O que não o impediu de dar vivas ao comportamento anárquico e ao erotismo.
Provocador até o fim
Derrubo todas as fronteiras e determino continuamente novas estruturas de pensar. Na segunda parte da vida de Dalí, velhos amigos tornaram-se detratores. Fiéis ao artista, apenas Gala e a mídia que adorava suas frases de efeito e atitudes irreverentes. Mas não parou de investigar. Na década de setenta, se interessou pela holografia e mais tarde mostrou-se sintonizado com as novas tecnologias.
Após a morte de Gala em 1982, Dalí irá amargar sete anos de azares. Sofria de Parkison (o que não o impediu de seguir pintando), feriu-se gravemente quando sua residência (o castelo de Púbol) pegou fogo. Viu sua saúde se extinguir caprichosamente.
Morreu em 1989, aos oitenta e um anos. Segundo testemunhas, tinha doçura no último olhar.Mas as surpresas não cessaram. Ao abrirem o testamento de Dalí, descobriram que o grande egocêntrico havia legado à Espanha, setecentos quadros, duas casas, um castelo, terrenos e algum dinheiro para que o povo possa desfrutar. Parece que estava sussurrando uma de suas frases: Se você me entender, eu fracassei.
Olé, Salvador Dalí!