Ricardo Eliezer Neftalí Reyes Basoalto, mais tarde e para sempre Pablo Neruda, nasceu em 12 de julho de 1904 na pequena Parral, Chile. Foi um conquistador de palavras e de milhões de leitores.
Paris, outubro de 1971, o embaixador chileno Pablo Neruda recebe a notícia de que é o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura. Havia sido indicado em anos anteriores, mas a glória e o cheque gordo sempre acabavam em outras mãos. Alguns suspeitavam que por ser ele comunista nunca levaria o Nobel. Uma hora mais tarde, o vencedor diria a centenas de repórteres: Os poetas sempre esperam um milagre. Hoje, o milagre se realizou. Imediatamente a alegria repicou em todo o Chile. Pablo Neruda era o segundo Nobel do país. A poeta Gabriela Mistral (1889-1957) ganhara o Prêmio no ano de 1945. Nas semanas seguintes, nasceram muitos Pablitos, edições de livros esgotaram-se, o Banco Central emitiu notas com versos do poeta. Um país tradicionalmente dividido em esquerda e direita se uniu em torno dele.
Mas não foram só os chilenos que comemoraram. O idioma castelhano, o fazer poético, a América Latina se engrandeceram. Afinal Neruda foi o bardo do continente. Poucos cantaram com tanto volume os rios, as montanhas, os mares, as cidades, os amores e as lutas da maioria de nós. Ele também foi o poeta carmesim: eterno comunista, perene amante. Com as flechas da razão e da emoção atingiu o coração de milhões de leitores. Neruda foi traduzido em idiomas incontáveis. Poesia não vende? Pois, a dele vendeu! Haja vista que seu Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, publicado pela primeira vez em 1924, com sucessivas reedições, ultrapassou a marca de milhões de exemplares.
Sua popularidade aumentou no Brasil com o filme O Carteiro e o Poeta (IL Postino), dirigido por Michael Radford, em 1994. Na história, um carteiro ao conviver com Neruda descobre que a poesia é o mapa e o território do amor. O filme foi um sucesso de bilheteria. De maneira resumida, o roteiro pincela duas facetas nerudeanas. Para o carteiro, Pablo era o poeta do amor. Já para o chefe do correio, Neruda era o poeta do povo.
Vermelho de ideias
Vencidas as privações de estudante pobre na Universidade do Chile, o jovem Pablo deixou Santiago para ser cônsul na Birmânia (atual Myanmar). A exemplo de muitos poetas – entre eles os brasileiros Vinicius de Moraes (1913-1980), João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Guimarães Rosa (1908-1967) – Neruda foi diplomata de carreira. Essa profissão o ajudaria a rodar o mundo e de uma certa maneira a internacionalizar seu olhar. Uma vez que para ele, fazer poesia era olhar com atenção para todos os seres. Dos enlutados indígenas até o pão, o idioma e o aroma.
Foi a vida diplomática que o levou à Espanha, primeiro a Barcelona, depois a Madri. No ano de 1936, ele é surpreendido pela Guerra Civil Espanhola que, entre tantos horrores, vitimou o amigo e poeta imenso Federico García Lorca (1898-1936). Dolorido, Neruda reage à truculência escrevendo o poema Espanha no Coração. Destituído do cargo de cônsul viaja a Paris. O homem que lutava com palavras também era um sujeito de ação. Faz articulações políticas, insiste a favor dos perseguidos por Franco e consegue que muitos recebam guarida no Chile. A partir daí, a fama de sua solidariedade encanta a esquerda do mundo.
Em 1945, morando novamente em Santiago, se filia ao Partido Comunista Chileno e se elege senador. Também nesse ano, Pablo Neruda veio ao Brasil para participar das homenagens ao comunista Luís Carlos Prestes (1898-1990), liberto depois de uma década do cárcere getulista. O documentário O Poeta e o Capitão, do jornalista Jorge Oliveira, recupera imagens históricas do Estádio do Pacaembu lotado, onde o chileno leu um discurso-poema enaltecendo a luta do cavaleiro da esperança, líder da famosa Coluna Prestes.
Neruda tinha sangue quente quando o assunto eram seus princípios. Ele acreditava, sinceramente, que os poetas deveriam contribuir para a construção da justiça social. Muitas vezes, pagou caro. Depois de um discurso no Senado, contestando o então presidente chileno Gabriel González Videla, teve sua prisão decretada. Virou clandestino.
Escondido, escreveu Canto Geral (1948) – um caleidoscópio de países, paisagens, histórias de mortos e de vivos do continente. Segundo o poeta, sua intenção foi dar voz aos maltratados. Para Julio Cortázar (1914-1984), o livro é uma prodigiosa geogenia latino-americana. Com o manuscrito na mochila, Neruda foge do Chile cruzando, a cavalo, a cordilheira andina.
Ao lado de sua militância comunista, incluindo viagens a Moscou, Pablo Neruda cantou o amor e as delícias da mulher amada: Nua és azul como a noite em Cuba. Sintetizou sentimentos experimentados por quase toda gente: É tão curto o amor e tão longo o esquecimento. O poeta viveu três casamentos. Com María Antonieta Hagennar teve sua única filha, Marina Alva, morta aos oito anos. Separou-se de Antonieta para casar-se com Delia del Carril, companheira de ideias e de viagens. Por fim, se casou com Matilde Urritia e com ela ficou até a morte. Poeta do amor, dedicou versos para todas elas. Mas para Matilde dedicou um livro inteiro: Cem Sonetos de Amor.
Apaixonados se alegram, choram, pensam com os versos nerudeanos. Entre as qualidades de sua voz poética, está a de deixar falar o cotidiano. Como se sua poesia obedecesse à lei da gravidade, trazendo o universo inteiro para a dimensão do chão onde, afinal, caminhamos todos.
Neruda falou de tudo. Maçãs, pedras, condores, aviões, indígenas, camponeses, mineradores, estudantes, mercadores, líderes sociais, escravos antigos e atuais. Sua produção impressiona, escreveu mais de 50 livros. Entre eles, uma autobiografia: Confesso que Vivi, na qual demonstra seu talento como prosador.
Talvez seja adequado pensar que a maior paixão de Neruda foi a palavra. É ele quem diz: A palavra tem sombra, transparência, peso, plumas, pelos. A palavra é a matéria-prima de qualquer poeta, mas para os grandes ela é gênese, percurso e chegada ao mesmo tempo. Por escrever tão bem, por urdir metáforas, imagens e ritmos, Neruda fez a mágica de transformar leitores em protagonistas. Não importa que ele nomeie uma mulher específica, lemos como se fosse a mulher que nos interessa. Não importa que descreva uma paisagem que nunca visitamos, lemos como se fosse uma paisagem da nossa infância. Não será isso a poesia?
Vermelho de vida
Pablo Neruda foi grande viajante. Retornou ao país natal muitas vezes. Talvez para compensar tantas residências em terras estrangeiras, se esmerou em suas casas chilenas. Na bela Santiago, ele ergueu La Chascona. Devido ao terreno acidentado, a casa é um labirinto que sobe e desce. A cozinha imita um barco com escotilhas para a passagem da luz. Também há na casa um óleo do mexicano Diego Rivera (1886 -1957) e as primeiras edições dos livros do poeta. Hoje, a casa é a sede da Fundação Pablo Neruda.
Em 1959, Pablo pediu a uma amiga que encontrasse uma casa em Valparaíso (o porto do fim do mundo). Uma casa para viver e trabalhar tranquilo. Solitária, mas sem exagero, nem muito grande, nem muito pequena e, principalmente, barata – ele desejou. A amiga encontrou. Neruda a chamou La Sebastiana e começou a reformá-la. A casa está em um bairro alto, por suas janelas descortina-se a deslumbrante baía de Valparaíso. O oceano Pacífico saiu do mapa! Não havia onde colocá-lo. Por isso o deixaram em frente da minha janela.
La Chascona e La Sebastiana fizeram ninho no coração de Neruda, mas foi na casa de Isla Negra, em El Quisco, que o timoneiro fundeou o barco. A casa está em frente ao mar. Em volta dela Neruda acalentou o sonho, nunca realizado, de construir uma Vila de Poetas, onde colegas de todo o mundo pudessem poemar com tranquilidade.
Depois de receber o Nobel, Pablo Neruda encontrou um Chile esperançoso. O socialista Salvador Allende, amigo pessoal do poeta, havia assumido a presidência. Nem ele nem ninguém previam o desastre que se avizinhava. Pois passados menos de dois anos, no 11 de setembro de 1973, Augusto Pinochet bombardeia o palácio La Moneda. Allende morre e o Chile mergulha em uma das mais ferozes ditaduras do Cone Sul.
Padecendo de tristeza e de leucemia, Pablo Neruda morreu no 23 de setembro. Se habría quedado dormido el océano?. Devido à repressão e ao clima de terror, poucos amigos acompanharam seu enterro. Entre eles, o poeta argentino Roberto Alifano (1943-), preso dias depois. O bardo do continente, cantor do amor e do povo, hoje respira pelos seus poemas que seguem inspirando milhões de leitores. Augusto Pinochet? Bom, não deixou nem sequer um verso.
As 3 casas: La Chascona, Isla Negra, La Sebastiana são museus abertos ao público.
Publicado originalmente na Gazeta Mercantil.
Neruda trailer legendado: