Mesmo que pareça ter sido em outra vida, até hoje não me conformo com a minha escola carioca ter ido ao chão dando lugar a uma loja de departamentos. O Instituo Lafayette feminino ocupava um belo casarão com janelões e árvores frondosas. Ele ornava um dos quarteirões da rua Conde do Bonfim. Antes de ser minha escola, o casarão abrigou o Clube Tijuca e antes ainda serviu de moradia para o Duque de Caxias, aquele que disse: Quem for brasileiro que me siga. Mas não é isso que conta. O que dói em mim é a falta do edifício na paisagem. Quando passo em frente de sua ausência, minha memória dá um tilt. Ou, em bom português, entra em parafuso.
Estudante da USP, no final dos anos 1970, morei numa república na rua Eliseu de Almeida, no bairro da Previdência. Em frente a nossa alegre e bagunçada casa passava o córrego Pirajussara. Um dia chegaram operários e máquinas. Canalizaram o rio. Com a obra, foram embora arbustos, sapos, passarinhos e passagens da minha juventude. A atual Eliseu de Almeida é um avenidão, onde engarrafam caminhões por metro quadrado. Se a queda de uma edificação já deixa a memória órfã, o que dizer do aterramento de um acidente geográfico? Alguma imaginação pode suportar Copacabana sem mar, Pantanal sem pântanos, Paris sem Sena? Inconformados com a Eliseu sem Pirajussara, deixamos a república estudantil da Previdência.
Nos dias que escorrem, minha mãe é incapaz de lembrar o que comeu faz cinco minutos. Mas não se esquece da sua casa tijucana na rua Barão de Mesquita. Ela consegue descrever o som do carrilhão na sala de jantar, os paladares de todas as frutas do quintal. Não preciso dizer que onde foi a casa, ergueram um predinho de cinco andares. Hoje mamãe não sabe dizer dia, mês, ano em que estamos. Mas repete o número da casa da Barão de Mesquita: 136. Ele funciona como prova de que houve algum lugar onde sua infância e adolescência moraram. Uma varanda da qual ela viu meu pai, garoto bonito, passar e acenar.
Mas se minha mãe gravou a fogo o número 136, da minha parte não recordo os números da minha escola tijucana e nem o da república da juventude. Sem drama, sou péssima mesmo. Para espanto de caixas e recepcionistas, cada vez mais jovens, não sei de cor os números do meu RG ou CPF. O que lembro de coração são cenas quebradas vividas nesses espaços. É fato que elas estão se tornando fantasmagóricas, memórias sem ancoradouros. Cadê o Lafayette, o Pirajussara, aquela Fernanda?