Faça o teste: escreva os nomes dos principais personagens que fizeram a Revolução Francesa. Se estiver faltando nomes de mulheres, você precisa urgentemente ler o trabalho da pesquisadora brasileira Tania Morin
Recordar o legado da Revolução Francesa (1789–1799) é instrutivo. Dela herdamos as denominações políticas esquerda, direita, centro. Mais a charmosa trindade liberdade, igualdade e fraternidade – tão cara ao sonho humano de sociedades mais justas. Fora isso, revoluções são a História apaixonada. Momentos únicos em que se vira a mesa, atirando ao chão tudo o que está sobre ela.
No período de dez anos, franceses e francesas cortaram cabeças, derrubaram a monarquia, instauraram a república, botaram a burguesia no poder.
Tempestade parecida só viria a ocorrer um século e 28 anos depois, quando russos e russas também fizeram a sua revolução. Se as revoluções tricolor e vermelha influenciaram cabeças em todo o mundo, estudiosos e cronistas das duas ainda nos devem desvelamentos da participação feminina em cada uma delas.
O livro Virtuosas e perigosas – As mulheres na Revolução Francesa contribui para preencher esse buraco na historiografia, tirando de detrás das cortinas as francesas atrevidas que acreditaram que a cidadania – preconizada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – era também para elas. Não era.
Mas as francesas agiram inúmeras vezes passando por cima disso. Haja vista a famosa Marcha para Versalhes, ocorrida em outubro de 1789. Vendedoras de peixe, costureiras, empregas domésticas, lavadeiras e outras mulheres do povo, algumas armadas, foram até a residência real, situada fora da capital francesa, para exigir pão e a volta do rei e sua família a Paris. Elas diziam: Viemos buscar o padeiro, a padeira e o padeirinho. Conseguiram.
O retorno foi triunfante, com Luís XVI e família na carruagem real pela estrada Versalhes–Paris. Iam vigiados por mulheres na frente, homens e soldados da Guarda Nacional atrás. Esse acontecimento inaugurou uma nervosa polêmica que seguiria por toda a revolução: Era correto as mulheres participarem da vida política?
No entender de mentes iluminadas – como as de Jean-Jacques Rousseau e Diderot –, a resposta seria: De jeito nenhum! Segundo esses filósofos, pessoas do sexo feminino eram fracas, altamente influenciáveis e burras demais para as coisas públicas.
A maioria dos jornalistas – profissionais muito lidos na época – também se horrorizava com mulheres do povo metendo o bedelho na política. Com destaque para o misógino Prudhomme.
Já os revolucionários, se perguntados, responderiam: Depende… Eles concordavam com a participação das mulheres, desde que elas fossem coadjuvantes de maridos, irmãos, filhos e se contentassem com uma cidadania sem direitos.
Mas elas – principalmente as mulheres do povo – fizerem ouvidos moucos embaixo das toucas e seguiram na ação. Aproveitaram as brechas oficiais. Depois de estarem presentes nos acontecimentos que culminaram com cabeças reais na guilhotina, abraçaram com amor e ardor a defesa da França Republicana e de seu povo soberano. Algumas se tornaram soldadas, lutando nas fronteiras e nas guerras internas. Há relatos de bravura, habilidade, sacrifício à pátria.
Outras – mais privilegiadas e, portanto, letradas – ousaram cobrar direitos civis para as francesas. Entre estas, se destacou Olympe de Gouges, que chegou a escrever e publicar uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, além de denunciar “a tirania que os homens exerciam sobre as mulheres”. Se a expressão já existisse, ela poderia ser chamada de feminista. Sua cabeça rolou na guilhotina em 1793.
Tania Machado Morin abre bastante espaço em seu livro para o advento de clubes femininos por toda a França. Não sem razão. Além de representarem uma tremenda novidade no final do século XVIII, essas associações concretizavam a passagem organizada das mulheres do espaço privado para o público.
Homens começaram a denunciar uma “inversão de papéis”, ao lado do sempre temido questionamento da autoridade natural masculina. Os clubes foram tão variados quanto variadas são as mulheres.
O mais político deles foi o parisiense Sociedade das Cidadãs Republicanas Revolucionárias, fundado por Pauline León e Claire Lacombe. Seu objetivo principal era defender a França e a revolução. Para isso, propunham que as mulheres se instruíssem politicamente, aprendendo a Constituição e as leis da república, além, é claro, de participarem dos assuntos cívicos. Em 1793, as mulheres desse Clube se aliaram aos esquerdistas da revolução, naquele momento os mais próximos das reivindicações populares.
Até que o pão e o sabão faltaram mais uma vez e o caldo entornou. Militantes revolucionárias e vendedoras de peixe entraram em conflito aberto. Enquanto as primeiras queriam enfiar goela abaixo das mulheres do mercado o ideário da revolução traduzido em símbolos, as feirantes queriam apenas defender a si mesmas e a seus filhos da fome e do frio.
É um momento de radicalização da revolução, no qual todas as contradições – que eram muitas – afloraram. Para os governantes, a parcela mais fácil de calar seria a das mulheres politizadas.
Que elas fossem amamentar e educar os novos francesinhos, prepará-los para servir à pátria. Que fossem cuidar dos maridos cidadãos. Que se afastassem das arenas políticas. E, por favor, que ficassem dentro de casa!
Por fim, em 1793, André Amar, relator do Comitê de Segurança Geral, ordenou o fechamento de todos os clubes políticos femininos na França. Foi a morte das organizações de mulheres, mas não de sua vontade de seguir revolucionando lado a lado com os homens.
Sem clubes onde se reunirem, elas passaram literalmente a tricotar nas tribunas. Entre um ponto e outro da agulha, aplaudiam ou vaiavam deputados. Passado um tempo, elas seriam chamadas raivosamente de bebedoras de sangue e fúrias da guilhotina, pois eram acusadas de manifestar prazer ao assistir a exibições públicas de cabeças decepadas.
Elas também tiveram participação efetiva nas últimas revoltas da revolução. Onde havia povo protestando, havia mulheres. O final da história todo mundo conhece: dançaram a pretensão política das mulheres, o povo soberano, a república.
As fascinantes palavras liberdade, igualdade e fraternidade tiveram adiada irremediavelmente a concretização de seus significados: as francesas só teriam direito ao voto em 1945 – pasmem, depois das brasileiras!
Fim dessa história, mas não de Virtuosas e perigosas. A autora reservou a parte final do trabalho para revelar e analisar, com muita sapiência, um encantador Caderno de Imagens, com materiais recolhidos por ela em bibliotecas de Paris.
Trata-se de uma crônica iconográfica da participação feminina nos tempos da república febril. Lá estão alegorias, ilustrações, gravuras, pinturas. Lá estão as mulheres reais, representadas como militantes, soldadas, ativistas. Populares e burguesas. Mulheres portando filhos, bandeiras, lanças, facões.
Também estão presentes as mulheres idealizadas pelos homens da revolução – as virtuosas, com seios generosos amamentando o futuro glorioso da França republicana. Aquelas que não perderam a sedução do sexo frágil, apesar de amantes da pátria tricolor.
E, como não poderia deixar de ser, lá estão as loucas, endiabradas, feias, bruxas que ousaram acreditar-se iguais aos homens em cidadania, participação e direitos.
O Caderno de Imagens também joga luz nas representações políticas e de gênero atuais. Certamente que as de hoje são mais sutis e com arte-final bem superior, mas, sob o pano, são parecidas com as ideologias que ainda dividem os sexos.
Virtude e perigo seguem plasmados no feminino, principalmente quando o artista é um homem. Por fim, as duas páginas dedicadas ao quadro símbolo da revolução, pintado em 1830 por Eugène Delacroix, A Liberdade guiando o povo, são impagáveis. Um belo livro para ser fruído por mulheres e homens.
Virtuosas e perigosas – As mulheres na Revolução Francesa
Autora Tania Machado Morin
Editora Alameda (apoio: Fapesp)
Ano 2013
Páginas 367
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