Quando se conheceram, ela tinha 13, ele 16. Foi no finalmente da década de 1940, no bairro da Tijuca, Rio de Janeiro.
Ela gostava de olhar os bondes passando em frente a sua casa, na Rua Barão de Mesquita, 136. A distância entre o bonde e a janela certamente era mínima, pois ela o viu equilibrando-se no estribo. Ele estava todo garboso no seu uniforme de aluno do Colégio Militar.
Ele também a viu. Se escolheram ali para uma vida toda e inteira. Às vezes, ele falava para ela que seria uma boa ideia os dois morrerem juntos: Na explosão de um Tupolev, quem sabe? Ela detestava a brincadeira, mas compreendia que no fundo ele dizia que a queria ao seu lado até na eternidade.
Numa noite de domingo, ele se foi. Sem ela. Aconteceu não na explosão de um avião, ou de um foguete. Ele morreu por doença, na cama do Hospital Santa Cruz, aos 83 anos, 1 mês e 20 dias.
Ela passou a regar o jardim do luto, com esmero extremo. Rodeada de fotos dele por toda a casa. Tentando jamais esquecê-lo por segundo que fosse.
Ontem de manhã, perguntei para minha mãe por que ela só olha as fotos do meu pai quando jovem. Ele no colégio militar, no primeiro emprego, no auditório do sindicato, no aniversário de dez anos de casados.
Mamãe respondeu bate-pronto: Eu não me recordo dele nem doente, nem velho. Desconfio que o que resta da memória dela se recusa a voltar ao sofrimento, ao velório, à cerimônia de cremação. Parecido a uma mesa de restaurante por quilo, onde escolhemos o que comer.
Percebo que ela decidiu recordar do melhor dos dois, do mel da vida. Em outras palavras, recordar-se da saúde, dos sexos, dos sonhos. E da juventude deles, por suposto.
O passado, como os mortos, não é uma ex-realidade. Muito menos matéria intangível. Ao contrário, o passado está na palma da mão. Ele faísca quando fechamos os olhos, ou viramos o rosto.
Para a dona Nete, o Marcus revive quando ela toca em fotos dele. Nesse gesto, repetido desde novembro de 2013, ela diz sem variações: Minha vida.
Fico na contra mão gosto mais do hoje e sonho com amanhã, o que passou mesmo os momentos bons me fazem sofrer, sei lá.
Sofrer faz parte, meu irmão. Beijo e obrigada pela leitura.
É muito humano! Viver o luto parece que tem haver em nos tornarmos, ou melhor, nos reconhecermos humanos. No mês passado, quando perdi um super amigo, a minha primeira reação foi buscar suas fotos no computador. O que seria de nós vivos sem as fotos daquelas/es que amamos.
Alderon, querido. Este amigo é o Argemiro, né? Senti muito também. E vivam as fotos! Beijo.
Adorei o texto, Fernanda. Sinto muita saudades da época que conversava com o Sr. Pompeu, ele petisca e eu contra, ele tentava me converter e eu não caia. Dona Nete dava risada e eu ficava na mesa conversando com eles. Era só eles me verem que ele me chamava. Perguntava do meu pai, o Fininho, e começávamos a conversar. Fala companheira, era assim que ele me chamava e brincava com o Lucas e depois quando meu pai desencarnou, ele conversava com tristeza e tudo mudou. Itanhaem não era mais a mesma. Gosto muito da dona Nete e sinto saudades. Bj grande.
Francislene, seu comentário aqueceu me coração. Lembranças que fazem a gente reviver esses queridos, mesmo que por segundos. Recordo bem do seu pai, o Fininho. Pais amados são eternos, né? Dona Nete manda beijos pra você.
Sempre desconfiei de que os seres humanos podem se servir ou fazer algo intangível. Se fossemos capazes de fazer isto, certamente escolheriamos materializar. Principalmente quanto a lembrança é a materialização dá mesma que nos permite prender o tempo que queremos manter na memória.
Lindo texto, fiquei emocionado. Um amor para recordar.
Sua avó e seu avô. Um grande amor. Adorei seu comentário. Beijo.
Muito sábia sua mãe.Lindo texto.
O coração sabe das coisas. Obrigada pela leitura, Regina.
Não vou esquecer nunca os nossos papos gostosos na esplanada do Satélite em Itanhaem!!!
O episódio em que ele me perguntou:
Oh portuga de onde és tu em Portugal?
E eu respondi,
Sou de uma cidade pequenininha lá no norte, o sr. não conhece, sou da Trofa!!!
Quem disse que não conheço? Conheço muito bem uma natural de lá a Cecília Ferreira!!!
Aí, meus olhos se arregalaram!!!
Não é que a Cecília Ferreira era minha cunhada do meu primeiro casamento, que tinha casado com o Macedo, que vivia aqui em S. Paulo e era vizinha do casal Pompeu/Nete???
Bom…
Foi o início de uma amizade forte e de longas e agradáveis conversas onde “devorei” o grande saber e a simpatia afável dessa figura que não esquecerei nunca.
Zé Bento, agora foi a sua vez de me emocionar. Mais uma história gostosa do meu pai. Valeu mesmo.
Este é o amor verdadeiro que todos gostaríamos de ter a oportunidade de viver!! Encontro de almas!!!
Parabéns pelo texto!!!
Obrigada pela leitura. Sempre.
Fernanda,
Adorei saber um pouquinho do passado desses nossos dinossauros, como eram chamados os nossos conhecidos como o Sr. Pompeu.
Dona Nete, sempre que me via, pedia uma “carteirinha”, essa tática dela das fotos adorei, só quem tem mais idade pode entender.
Hoje que não tenho mais meus pais, também faço isso. Parece que enchem nosso coração.Bj.
Marisa Maurer da Cooperforte.
Marisa, mamãe e suas estratégias. Saiba: pai e mãe são eternos. Mesmo quando não os vemos. Super obrigada pela leitura.
Linda crônica! sua escrita é límpida, bem construída, de maneira que é um prazer ler. o fecho conecta-se com o desenvolvimento e universaliza-se. Felicito sua capacidade de síntese. Adorei!
Puxa, Vilma. Fico muito feliz!
Beijo.
Olá titia querida, com prazer falo desse camarada que guardo para sempre em meu coração, falo aqui, deitado e emocionado, lembrando dos tempos de criança que passei ao seu lado, juntamente com minha vovó querida. Marcus Flávio Pompeu, meu vovô amado, um homem do bem, batalhador de seus ideais e sempre ajudando seus netos.Falo no presente com o sentimento de que ele ainda está lá, sentado em sua poltrona, assistindo o noticiário ao lado da dona Nete.
Pompeuzão, obrigado pelo privilégio de te chamar de Vô, te amo pra sempre, seu neto Igor Pompeu…. Obrigado tia, beijinhos…..
Igor, que delícia de comentário. Ter o Pompeu com seu avô e como meu pai foi mesmo um privilégio. Lembro dele todos os dias. Acho que assim será por toda a minha vida. Beijo da tia Fernanda.
Linda história de amor dos seus pais. Muito linda. Histórias assim são cada vez mais raras hoje em dia.
Ivana, toda história de amor é uma joia. Beijo, querida.
Lindo texto. Acabo de ler hoje (29 12) exatamente no dia em que meus pais completariam 66 anos de casados. Faltou pouco. Fui tocada especialmente pela semelhança dos amores de antigamente. Duradouros, cheios de ternura, companheirismo e de vontade de estar com o outro por toda a vida e a eternidade também. No dia em que ela partiu, entre lágrimas ele repetiu: você foi o amor da minha vida! Felizes os que têm a ventura de viver um amor assim.
Também acho, Dulcy querida. São feliz os amantes dos longos amores. Beijo.