Já se vão mais de trinta anos que minha amiga, num gesto tresloucado e para sempre inexplicável, atirou uma bala contra a própria cabeça interrompendo uma mente brilhante. Pois, aos 20 anos, ela era rápida, criativa, ousada e, supreendentemente para sua idade, muito culta. Por que se matou? Essa resposta só terei se um dia encontrá-la quando eu me mudar para as nuvens.
Mas essa história de filhas que vou contar começa numa festa. Já embriagadas, minha amiga me sussurrou – em tom de confidência – que seu pai foi um dos caras que mataram Carlos Marighella (1911-1969). O assassinado, todos sabemos, foi tachado pela ditadura como seu inimigo número 1.
Fiquei surpresa com a revelação. Por delicadeza, não fiz nenhum comentário. Mas ela estava com vontade de desabafar. Contou que seu pai era da equipe de Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979), uma espécie de delegado pit bull dos milicos (sem querer ofender os cachorros dessa raça).
Ela era uma menininha de pré-primário quando da emboscada a Marighella na alameda Casa Branca, no paulistano bairro dos Jardins. A garotinha ouviu a história em casa e se encheu de orgulho:
Papai havia matado o monstro vermelho!
Toda orgulhosa – afinal qualquer criança reverencia um papai que mata monstros – espalhou para os coleguinhas o feito. Isso foi lá atrás. À medida que ela foi crescendo e sabendo das coisas, a admiração pelo pai virou constrangimento. Tanto que ela só me revelou a história depois de altos graus etílicos. A festa acabou, cada uma foi para sua casa, e nunca mais retomamos esse assunto.
Mas, por certo, pensei bastante sobre a situação. Minha amiga fazia Letras na Universidade de São Paulo – USP, em meados dos anos 1980, quando 95% dos alunos eram de esquerda, com a sociedade sedenta pelas liberdades democráticas e por novas possibilidades. Daí compreendi que o pai delegado, matador do Marighella, era uma mancha na alva toalha dos cafés da manhã dela.
Em 10 de novembro de 2013, perdi meu pai. Lá no velório, um amigo dele pediu licença para discursar. Ele exaltou o quanto o falecido foi um companheiro comprometido com as lutas da esquerda, um militante incansável. Eu senti um orgulho! Por momentos, estiou a chuva dentro de mim. No dia seguinte, recordei da minha amiga , da festa, da embriaguez. Pensei que nem sempre é vantajoso ter um papai matador de monstros.
Leia Clara Charf todas as lutas
Leia também en español
Gostou? Compartilhe.
Muito bom Fernanda
Beijo, querido Mauro!
Adoraria vê-los levando um papo nas nuvens!! Um beijo, Fe.
Cida querida, bom dia. Seria um papo interessante. Mas será que esses dois conversariam? Beijo.
[…] a paixão por um Brasil comunista que fez Carlos Marighella arriscar liberdade e vida e acabar sendo assassinado em uma rua de São Paulo. A paixão por […]