Meu irmão David virou evangélico. Agora é tudo por Jesus, maninha. Vai todo mundo para a conta dele. O sucesso e o fracasso. A riqueza e a pobreza. O amor e o ódio.
Pensei: Ai, meu pai! Era o que faltava. Mais um adepto de Jesus para incinerar minha paciência. Tenho saudades do Brasil católico. Hipócrita, carola, fetichista mas mais silencioso. Eu entrava no táxi e lá estava, no painel ao lado do taxímetro Capelinha, Nossa Senhora de Aparecida miudinha, pretinha, caladinha. Ela não ofendia ninguém e o taxista não se referia a ela. Uma imagem.
Mas hoje tem cada vez mais taxista evangélico, com a Bíblia à mostra. Eles ficam esperando o primeiro comentário – o inferno do trânsito, a secura do clima, o mar de corrupções – para nos estressar com arenga infinda. Porque a palavra de Deus é soberana. Porque o senhor é o nosso pastor. Nada somos, ele é tudo! O calvário do tédio.
Não tenho nada contra religiões. Cada um acredite no que puder. O que me tira do sério é quererem me ganhar. Propaganda despudorada. Não dá para contra-argumentar com a palavra do Senhor. Ela é onipresente, onisciente, pétrea, definitiva.
A primeira crente que conheci chamava-se Adélia. Era a empregada da vó Rachel. Toda dia pegava o trem em Francisco Morato, descia na Estação da Luz e caminhava para o casarão na rua Três Rios, Bom Retiro. Adélia tinha os cabelos longos e usava saias muito além dos joelhos. Não lia a Bíblia porque era analfabeta.
O casarão da Três Rios não existe mais. Veio abaixo junto com o quintal dono de mangueiras, pitangueiras, sapotis. Vó Rachel também deu tchau faz quase quarenta anos. A primeira morte importante que eu vivi. Lembro que Adélia chorou discretamente do velório da patroa. Nos olhou com cara de despedida.
Logo depois, tio Isac mandou Adélia embora. Ele nunca gostou dela. Orientada pelo pastor da sua igreja em Francisco Morato, ela entrou com uma ação trabalhista contra a família. Parece que perdeu. Ou recebeu uns caraminguás em um acordo. Nunca mais soube da empregada da minha avó. Deve estar ao lado do Senhor, pois pelas contas ela teria agora cem anos.
Meu irmão David nunca deu bola para a religião. Lembro que na noite que sucedeu o seu bar-mitzvá, ele chorou escondido e copiosamente. Me disse que não acreditava em nada, começando por Deus. É claro que durante a cerimônia, ele segurou a personagem do bom menino na frente do papai e da mamãe e, principalmente, na frente do tio Isac – o rabino.
Essa era uma característica do meu irmão: faltar com a verdade para manter a casa em pé. Acho que é assim até hoje. Apesar dele me parecer um crente sincero. Será? Mas quem pode apontar o dedo? Quem pode atirar a primeira pedra?