Tostines vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais? A frase publicitária é perfeita para outra pergunta: A literatura negra é pouco publicada porque aparece pouco, ou aparece pouco porque é pouca publicada?
O livro Africanidades e Relações Raciais, organizado pela escritora negra Cidinha da Silva, responde, relativiza e contextualiza essa pergunta. Quarenta e oito autores – vinte e três mulheres e vinte e cinco homens, sendo 90% negros – se unem numa força-tarefa para refletir acerca das memórias e atualizações das raízes africanas, escravidão, quilombos, libertação, marginalização, discriminação e preconceito.
Também, por suposto, Africanidades e Relações Raciais narra histórias de sucesso, resistência e superação na vasta e complexa cadeia da escrita e leitura no Brasil. A começar, pondo o dedo na ferida nacional: a imensa maioria dos pobres brasileiros são negros. A continuar, fazendo a pergunta fatal: Quantas personagens negras encontramos na literatura brasileira? Não vale contar escravos anônimos, criadas, meninos de recado, prostitutas, drogados, malandros, desvalidos de toda sorte.
A tese central que percorre os ensaios, depoimentos, relatos do livro é: a “invisibilidade” de textos de autores negros tem a ver com o racismo no Brasil. Este que escorrega sob a máscara de uma democracia racial. É evidente que muitos citarão Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Souza como negros integrantes da lista dos clássicos da nossa literatura. Mas é muito pouco.
Há relevante produção passada e contemporânea que se mantém no limbo, ou circunscrita a editoras e selos negros. Portanto, com recepção franzina. Também sabemos que a literatura funciona em modo diálogo. Um texto se comunica com outro e com outro, formando as tradições. Mas para que isso aconteça é preciso haver oferta de conteúdos.
Se quisermos saber como a ficção tratou a imigração italiana em São Paulo, ou a portuguesa no Rio de Janeiro, encontraremos grandes buquês. Mas se quisermos saber como obras de ficção trataram as subjetividades das pessoas negras na sua imigração forçada, ficaremos a ver navios. Não os negreiros, mas os fantasmas.
Somando-se a essas dificuldades, falta divulgação da expressão atual de escritoras e escritores negros. Voltando à pergunta do Tostines, de que forma o grande público lerá títulos de autores negros, se eles não estão nas grandes livrarias e nem fazem parte orgânica do mercado editorial?
A boa supresa do livro, organizado por Cidinha da Silva, é que mais do que perguntas, ele oferece respostas. As melhores vêm em forma de exemplos. Entre eles, os vigorosos saraus que pipocam nas periferias de algumas cidades. O mais famoso deles é o Cooperifa, fundado em 2001, onde leituras e declamações acontecem no Bar do Zé Batidão, zona sul de São Paulo.
Mas há vários outros saraus espalhados por praças, bairros, centros de cultura. Neles, o encontro fundamental é entre autores e ouvintes-leitores. Também funcionam como estímulo para jovens e velhos escribas mostrarem o que andam prosando, poetizando. Outra curiosidade, bem significativa, é a releitura da palavra sarau.
No passado, saraus eram reuniões literárias e musicais em salões burgueses. Basta lembrar dos famosos saraus na casa da Dona Olívia Guedes Penteado, espécie de socialite, frequentado pela malta modernista e branca de São Paulo. O que pensar, então, de saraus em botecos, morros, salões de igrejas, bairros periféricos, frequentados por uma maioria negra?
Mais um exemplo vigoroso de aproximação com o público leitor são as Bibliotecas Comunitárias. De forma geral, elas estão em espaços geográficos pouco assistidos por ofertas culturais. Geridas por pessoas da própria comunidade, elas ganham asas de liberdade e criatividades.
Um dos relatos dá conta de uma biblioteca que nasceu em um bar. O acervo foi formado pelos moradores, tendo uma simples regra de empréstimo: Se você não quiser devolver o livro que pegou, traga outro. Nada de burocracias com fichinhas, CPFs, RGs. A ideia vingou e, no lugar de devolver um exemplar, muita gente devolveu dois.
Entretanto bibliotecas comunitárias não têm necessariamente em seu acervo títulos de autores negros. Essa é uma questão a ser trabalhada por meio de sensibilizações e de conhecimentos. Uma das chaves é mostrar que está vencida a época em que se falava em nome dos negros. A nova temporada, sem data para expirar, é os negros falarem de si mesmos, com toda a liberdade que a literatura abarca.
As bibliotecas comunitárias também são fundamentais para formar leitores. Por décadas, grande número de crianças brancas herdava o gosto da leitura de avós e pais. Viam e manuseavam o objeto livro em suas casas. Enquanto a maioria das crianças negras e pobres chegavam aos primeiros anos escolares sem nenhuma, ou quase nenhuma, intimidade com os livros.
Forte aliada para a divulgação e consolidação da ficção negra é a Lei que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar. O que, grosso modo, significa que crianças e jovens negros e brancos aprenderão sobre as raízes e as contribuições de metade da população brasileira. Muito além do carnaval, do samba, da culinária e do futebol.
A conta é simples, a temática negra necessita de conteúdos apropriados e eficazes, abrindo o apetite para a literatura dos africanos e afro-brasileiros. Oportunidade também de revisitar aqueles que abriram caminhos bem antes dos saraus e bibliotecas comunitárias.
Existiram escritores do naipe do gaúcho Oliveira Silveira (1941-2009) poeta e um dos idealizadores do 20 de Novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. Houve o mestre Abdias Nascimento (1914-2011) idealizador do Teatro Experimental do Negro. Houve Solano Trindade (1908-1974), agitador das artes no Embu – SP. Houve a surpreendente escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que tem páginas bônus no livro Africanidades e Relações Raciais.
Certamente existiram muitas outras penas negras que hoje aguardam por resgate e reconhecimento. Também há maduros na ativa. Dezenas de escritoras e escritores em plena escrivinhação, tentando estratégias e mostrando resiliência frente a cenários adversos para a sua produção literária e para a literatura brasileira em geral. Mas sem esquecer da internet – rede que possibilita a disseminação de espaços digitais – onde a literatura escritas por negros tem tudo para vicejar.
Os aplicados autores do livro elencam fortes sugestões para turbinar e democratizar as políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil. Entre elas, há ações afirmativas para escritores e leitores negros, no esforço de minimizar as desigualdades raciais que os atingem. Propostas de cotas para prêmios-estímulos promovidos pelos governos, compra qualitativa e sensível ao tema de livros para escolas e bibliotecas públicas e comunitárias. Fomentos para planos municipais de divulgação da leitura literária.
Sem falar no estímulo de bolsas acadêmicas para interessados, negros e brancos, em estudarem a contribuição literária dos negros africanos e brasileiros. Grande ênfase é dedicada à Lei que torna obrigatório nas escolas a temática História e Cultura Afro-Brasileira, vista com um marco na educação para valorizar a população negra, enfraquecer o racismo e dilatar o conhecimento de todos. São vôos de grande altitude, mas absolutamente necessários.
O povo negro cansou da sucessão de “gerações perdidas”. A tinta negra quer correr livremente nas veias da nossa literatura, mestiça por nascimento e criação. Em nenhum momento é imposto o que escritoras e escritores negros podem ou devem escrever. Na verdade, eles podem e devem escrever o que quiserem. Desde contar de suas bisavós escravas até narrar a vida de uma família abastada na Escandinávia.
Africanidades e Relações Raciais – Insumos para Políticas Públicas na Área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil.
Organização Cidinha da Silva
Editora Fundação Palmares – Ministério da Cultura
Ano 2014
Páginas 402
maravilhoso admiro muito você adoro compartilhar
tudo de literatura vida de pessoa que luta para realizar
seus sonhos meus parabéns.
Oh, Irene! Os sonhos dos outros, às vezes, também são os nossos, né? Muito obrigada pela leitura. Nesta semana, vou postar um texto que escrevi sobre a Carolina. Avisarei para você. Beijo grande.
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