A capivara Niède Guidon

Agosto de 2016: o Parque Nacional Serra da Capivara, sítio arqueológico de grande excelência no Piauí, corre o risco de morrer por falência de recursos. Faz…

A partir de foto da Nair Benedicto A partir de foto da Nair Benedicto

Agosto de 2016: o Parque Nacional Serra da Capivara, sítio arqueológico de grande excelência no Piauí, corre o risco de morrer por falência de recursos. Faz 11 anos, eu vivi o privilégio de conhecer o Parque e entrevistar sua guardiã Niède Guidon. Da entrevista escrevi o perfil abaixo. Ele mostra um pouquinho quem Niède é. Vale lembrar que ela também foi indicada, junto com outras 999 mulheres, ao Prêmio Nobel da Paz de 2005. Não ganharam, mas levaram.

Contrariando os amantes que lamentam a aurora que anuncia a separação, mal o sol desponta ela entra na sua caminhonete 4×4 e vai ao encontro de sua paixão. Para estar ao lado dele, ela trocou Paris por São Raimundo Nonato, no Piauí. Em nome dele, ela enfrenta caçadores, detratores, tecnocratas, invasores, arqueólogos ortodoxos. Para mantê-lo vivo, ela tenta atrair a curiosidade dos brasileiros para milhares de anos atrás.

O nome dela é Niède Guidon, nascida em Jaú, São Paulo, no ano de 1933. O nome dele é Parque Nacional Serra da Capivara, criado em 1979. Os dois são cheios de títulos. Ele é Patrimônio Cultural da Humanidade com papel passado pela Unesco. Ela é livre-docente em Arqueologia com papel passado pela Sorbonne.

A história deles começou em 1963. Ele ainda não era Parque, ela ainda não sabia que seria sua guardiã. Fazendo-se de Cupido, o acaso favoreceu o encontro. Niède trabalhava então no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, quando um ex-prefeito da região da Capivara a procurou para mostrar fotos de desenhos de índio. Ela viu que se tratava de algo completamente desconhecido e belo. Anotei o nome do lugar.

Nas férias seguintes ela tentou ver os desenhos, as chuvas impediram. Logo depois veio o Golpe Militar de 1964, ela deixou o Brasil rumo à França, mas aquelas fotografias nunca saíram da sua cabeça. Finalmente, em 1971, após acompanhar uma missão arqueológica francesa em Goiás, ela pegou o carro para o sudeste do Piauí. Aportou no começo da maior aventura de sua vida.

Fotografou alguns sítios repletos de desenhos e pinturas rupestres, presumiu que muitos outros se escondiam, protegidos por serpentes, sob a mata fechada. Voltou para Paris, convenceu seus pares e organizou a primeira de uma série de expedições à Serra da Capivara.

Escavaram e escavaram. Além de fósseis de animais de grande porte, os pesquisadores encontraram urnas funerárias, ferramentas, utensílios de cerâmica. Colecionaram vestígios da presença humana, em solo americano, com mais de 50 mil anos.

Um susto para os arqueólogos que, até aquele momento, consideravam a mulher e o homem americanos muito mais jovens. Deram de cara com a arte rupestre em infindáveis paredões de rocha, um acervo iniciado há milênios. Museu a céu aberto.

Com o empenho dela, ele se tornaria Parque Nacional. Mas no começo, com Niède transitando na ponte Paris–Piauí, ele não passava de um parque no papel. Sem segurança, sua fauna era morta por caçadores e sua arte destruída por depredadores. O casamento deles se tornou inexorável. Professora aposentada pelo governo francês, foi convidada pelo governo brasileiro para dirigir o Parque Nacional. Ela disse adeus ao Sena e ao Jardim de Luxemburgo.

Em 1993, com residência em São Raimundo Nonato, Niède Guidón criou a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham) que, em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), é  responsável pelo manejo do Parque Nacional Serra da Capivara.

Mas não apenas pelo manejo. Como o Brasil faltou à aula em que ensinaram a pesquisar o passado para fruir o presente, o trabalho de Niède Guidon extrapola o da arqueóloga. Ela é uma executiva total. Corre atrás de dinheiro, sobe a rampa do Planalto, bate na porta de governador, entra nos gabinetes dos prefeitos, cobra ação dos delegados de polícia para coibir caças e invasões na área do tesouro.

É preciso ter espírito de guerreira para proteger esse patrimônio, que é dos brasileiros em geral e da humanidade em particular. Há no Parque uma mostra de caatinga nativa com seus mandacarus, xiquexiques, aroeiras, juazeiros. Por lá, circulam lagartos, iguanas, periquitos, papagaios, araras-vermelhas, tatus, mocós, seriemas, onças, gatos-do-mato, veados.

Toda essa vida presente convive com vestígios e representações pré-históricas. Até agora, foram encontrados 809 sítios arqueológicos, sendo quinhentos deles com pintura rupestre. Arte sofisticada que compreende duas tradições, a nordeste e a agreste. Grafismos de uma beleza tocante, com temas recorrentes de dança, caça, coleta, divertimentos, sexo, trabalhos de parto.

É preciso ter olhos de lince para vigiar tamanha riqueza, pois o Parque não se defende sozinho. Então, mais uma vez, Niède Guidon mobiliza suas energias para convencer políticos, gestores sociais e a comunidade acerca do enorme potencial turístico-cultural da região.

Hoje, está empenhada na construção de um aeroporto internacional em São Raimundo Nonato, que despejará pesquisadores e milhares de turistas. Tráfego de alto nível que poderá criar uma massa de empregos diretos e indiretos. Não transformará o sertão em mar, mas irrigará a caatinga com capitais econômico e cultural.

Niède Guidon é visionária. Compreende que amar o passado da humanidade é preservar, no presente, a pujança do Parque Nacional Serra da Capivara para o futuro. É dela a frase: O Piauí já foi primeiro mundo, de repente pode voltar a ser.

Vídeo Serra da Capivara


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