Sampa sitiada

O 15 de maio de 2006 entrou para a memória como o dia em que a locomotiva brasileira – a cidade de São Paulo – brecou…

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O 15 de maio de 2006 entrou para a memória como o dia em que a locomotiva brasileira – a cidade de São Paulo – brecou a todo o vapor. O curioso é que não foi o maquinista o responsável. A locomotiva parou porque seus passageiros assim decidiram

Os comércios fino e popular abaixaram suas portas.  Funcionários e estudantes – públicos e particulares – foram dispensados antes do horário. Bares e restaurantes desistiram de sua noite.

Os pontos de ônibus coalharam-se de cidadãos transformados em ávidos caçadores de conduções em extinção. Nas marginais do Pinheiros e do Tietê, quilômetros de motoristas engarrafados se desesperavam.

Milhões de paulistanos queriam entrar em suas casas e fechar, com ferrolhos reais e imaginários, portas e janelas.

Segunda-feira, 15 de maio de 2006, estávamos desligando a maior cidade do país. Aquela na qual, sabendo procurar, podemos comprar até leite de galinha. Foi como se ouvíssemos uma ordem tácita: Refugiem-se no espaço privado, porque o espaço público faliu.

O raciocínio era simples e verdadeiro: se até policiais – militares, civis, municipais, penitenciários – estavam sendo executados, o que seria de nós paisanos desarmados?

O pesadelo havia começado três dias antes, quando o PCC – Primeiro Comando da Capital, organização criminosa gestada e gerenciada dentro dos presídios, deflagrou onda terrorista de matança de policiais. Foram tiros na nuca, no peito, no coração. Foi, também, tiro de misericórdia na política de segurança pública.

Tevê, internet, jornais, rádios se fartaram no banquete. Não precisaram de esforço para inventar nada, nem espetacularizar os fatos. Ônibus ardendo, rostos angustiados, viaturas ensanguentadas, velórios comovidos, presos rebelados, mães chorando em cima de caixões de filhos.

Em horas, o Brasil inteiro ficou conhecendo o Marcola. Craque da bandidagem, com MBA nas infectas e ineficientes cadeias brasileiras. De quebra, ouvimos o governador do estado, o secretário de segurança, o secretário de presídios, o comandante da Polícia Militar declararem: Não fomos pegos de surpresa, tudo está sob nosso controle.

Se as autoridades já sabiam que o PCC atacaria e nada fizeram foi porque nada podiam fazer. Foi o suficiente para mais de 10 milhões de pessoas sentirem-se órfãs do poder público. Tal orfandade não surgiu nesse dia, foi bem a gota d’água. O sentimento de que as instituições não protegem os cidadãos está em toda parte.

Não foram os fatos e nem os boatos que levaram os paulistanos prematuramente para casa. Foi o medo. Difuso, irmanou a cidade. A patroa correu para buscar o filho adolescente na escola, a empregada correu para impedir que o filho adolescente saísse, à noite, de casa. A patroa teve medo do bando do Marcola, a empregada teve medo do Marcola e do revide da polícia.

Pela experiência, a corda arrebenta na periferia. As batidas policiais, à caça dos suspeitos pelos atentados, não incomodaram os bairros de classe média. Ameaçam, e muito, os moradores das periferias.

O que vimos na sequência do dia 15 de maio foi o crescimento do número de mortos. O Instituto Médico Legal apinhou-se de cadáveres. Talvez, os policiais também não acreditem no Poder Judiciário e façam justiça com tiros de revólver.

Certamente, alguns inocentes foram para debaixo da terra. Provavelmente suas mortes nunca serão verdadeiramente investigadas. Não faltou o teatro de investigaremos até o fim, mas o final da peça todos conhecemos: ninguém investida mortes de jovens pretos e pobres.

Que ressaca! O melhor seria, ao contrário do que desejam as autoridades, não voltarmos à normalidade. Porque faz tempo que nada está normal. Mais sábio seria não deixar a história do 15 de maio de 2006 morrer. Até em homenagem a tantas vidas – fardadas e civis – estupidamente interrompidas.

Perscrutar a perplexidade pode ser uma atitude positiva. Não precisamos ter as respostas, para tantos males, na ponta da língua. Talvez o melhor seja ouvirmos o tiquetaque do coração. Ele sempre sopra que sangue não estanca sangue e brutalidades não levam à paz. Pensemos. 


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