Augusto Monterroso, escritor para escritores

Um mestre para escritores

Fonte: Gazeta Mercantil Fonte: Gazeta Mercantil

“Um leitor aborrecido é o fracasso do escritor”

Augusto Monterroso (1921-2003) nasceu em Honduras. Antes de ele engatinhar, sua família mudou-se para a Guatemala. Aos 23 anos partiu para o exílio no México, onde se casou duas vezes, teve duas filhas, escreveu toda a sua obra e aos 81 anos morreu. Ele fugiu de uma Guatemala convulsiva: com sucessivas quarteladas, perseguições políticas e crimes socioeconômicos comandados pelo conluio dos governos com a empresa bananeira United Fruit Companhy, de bandeira norte-americana.

Baixinho, sem esticar-me, meço facilmente um metro e sessenta, viveu seus anos de formação entre a Biblioteca Nacional da Cidade da Guatemala e o emprego em um açougue. Trabalho quase escravo. Ele folgava um dia por ano, justo quando comer carne é pecado, nas sextas-feiras da Paixão. Por sorte, o adolescente Monterroso tinha um chefe amante da literatura, que permitia que o empregado lesse, nas horas brandas, os livros que pudesse. Assim, entre esquartejar um boi aqui e outro ali, ele devorou a Montanha Mágica, de Tomas Mann, e viajou de cor e salteado no Dom Quixote de La Mancha.

Em 1959, já no México, publicou seu primeiro livro com três provocações: primeira, o título Obras Completas (y Otros Cuentos). Segunda, um dos contos tinha apenas uma frase. Terceira, era muito bom. Sua estreia foi somente o arranque para uma escrita concisa na forma e caudalosa no conteúdo.

Italo Calvino, no seu utilíssimo Seis Propostas para o Próximo Milênio (edição póstuma), confidencia: Gostaria de organizar uma coleção de histórias de uma só frase. Mas até agora não encontrei nenhuma que supere a do escritor Augusto Monterroso. A saber: Cuando desperto, el dinosaurio todavia estaba allí”. (Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá)

Mas a prosa monterrosiana não vive só de uma linha, ela é composta por fábulas, ensaios, contos, memórias, diários e outros textos sem classificação precisa. Verdade que a brevidade é uma de suas marcas mais profundas. O escritor tinha ao lado da máquina de escrever uma tesoura afiada, louquinha para cortar adjetivos, adornos e excessos. Compaginando com Juan Rulfo e outros, Monterroso pertence à confraria literária cujo lema insiste escrever é suprimir. Inspirado declarou: Hoje me sinto bem, um Balzac, estou terminando essa linha.

Não entediar o leitor foi sua missão e seu objetivo. Ele acreditava ser um dos direitos humanos pular páginas ou mesmo abandonar um livro. Para que isso não acontecesse com suas páginas e seus livros, usou de inteligência e da emoção para levar o leitor da primeira à última palavra. E conseguiu! Augusto Monterroso, pouco conhecido no Brasil, coleciona leitores em muitos idiomas. Ele é uma referência brilhante e recorrente na narrativa contemporânea.

Incendiando escaninhos
Ao lado da brevidade, Monterroso dessacralizou os gêneros literários. Não apenas por transitar com a máxima sem-cerimônia entre o conto e o ensaio, a fábula e o diário. Ele misturou um tratamento no outro. Assim, começamos a ler um ensaio que pode virar um conto e vice-versa.

A doutora em letras Graciela Tomassini acerta no alvo quando diz: Monterroso, ao liberar as possibilidades da escrita, libera, também, as possibilidades da leitura. Ele divide com os leitores suas conquistas. Ótimo exemplo é o livro La Letra E, publicado em 1987. Nele o leitor flana por uma vertigem de textos sem classificação, o que é igual a dizer sem gênero definido.

Na prosa do gigante de um metro e sessenta, o denominador comum é o prazer que a sua leitura incita. Tentar classificar um texto de Monterroso é uma tarefa de Sísifo – carregar a pedra para vê-la rolar montanha abaixo. A saída é se entregar à literatura que sonha. Rir com seus aforismos: As pessoas adoram dar e receber conselhos, mas a maioria não faz nada com eles.

Aprender com suas lições: Buscar a originalidade é ser você mesmo. Meditar com suas fábulas: Há muitos anos, em um país longínquo, existiu uma ovelha negra. Foi fuzilada. Em suma, o melhor é aproveitar o banquete tão amorosamente preparado para nós.

A obsessão por experimentar gêneros dentro de um mesmo livro pode ser creditada à obsessão do autor em não se repetir. Ele sempre lutou para que um livro fosse diferente do outro. Tinha verdadeiro horror às fórmulas, pois elas facilmente se tornam camisas-de-força para a imaginação do escritor e do leitor.

Ele corria, como o diabo corre da cruz, da tentação de ter “um estilo”. Não é à toa que, em um de seus livros, ele escolhe como epígrafe uma frase do espanhol Lope de Vega: Quero mudar de estilo e de razões.

As mudanças de ritmo, enfoques e gêneros seduzem o leitor. A variedade é que mantém nossa curiosidade desperta. Ao abrirmos um livro de Augusto Monterroso, o único termo de garantia sem data de expiração é o da qualidade. Quanto aos temas, as surpresas são muitas: moscas, escritores, espelhos, amores, dinossauros, melancolias, risadas. Sempre com muita sensibilidade, como se a inspiração fosse seu anjo da guarda.

Enfim ele não queria meter-se em nenhuma gaveta literária. Fugia da gosma adesiva dos rótulos. Sua única fidelidade foi com a boa literatura. Dizia que a batida frase o estilo é o homem soa bonito, mas não quer dizer nada. A sentença que afirmou e reafirmou foi: O único compromisso do escritor é escrever bem, com ou sem dinheiro, casado ou solteiro, guerrilheiro ou policial, incendiário ou bombeiro.

Mestre generoso
Augusto Monterroso também atingiu fama como “escritor para escritores”. Não por ser didático ou profético, mas por ser generoso e culto. Foram décadas de dedicação a frases, parágrafos e páginas com brilho. Organizou oficinas de escrita literária na Universidade Nacional Autônoma do México – Unam, onde foi professor e em outros espaços culturais.

O que tinha a dizer sempre foi culto e refinado. Por um lado, estimulava a liberdade dos caminhos. Por outro, preconizava o bom uso do idioma, com a observância de suas regras, a serviço da clareza e elegância da expressão.

Também nunca defendeu seu “jeito de escrever” como o único ou o melhor. Não era um tipo doutrinador. Artífice da narrativa breve, jamais desestimulou quem quisesse se alongar. Dono de um humor impagável, nunca fez marketing da página divertida. Costumava dizer que o humor não é um gênero: É tão só um ingrediente. Se exageramos nele, a comida sai ruim. E mais: A função literária do humor é fazer pensar e, algumas vezes, fazer rir.

Deixou lições de mestre para aspirantes a autores. A melhor delas é o conto Leopoldo (sus trabajos), escrito em 1948, quando o próprio Monterroso tinha dúvidas quanto a se tornar escritor. Leopoldo é um sujeito cheio de ideias, capaz de pesquisar exaustivamente temas para muitos contos, mas incapaz de plasmar palavras no papel. Ou seja, um escritor que não escreve. Essa autêntica tragédia é contada de uma forma graciosa, ou seja, 100% Augusto Monterroso.

Alunos seus recordam que o escritor sabia escutar. Ouvia com extrema curiosidade as opiniões acerca de seus livros e sobre a literatura. Em entrevistas, ao deparar com a pergunta-chavão que conselho o senhor daria aos jovens escritores?, gostava de responder: No lugar de dar conselhos, prefiro escutar quais conselhos os jovens têm para me dar. Modéstia. O mestre deixou dicas douradas. Entre elas, trabalhar para que o trabalho não apareça aos olhos do leitor.

Augusto Monterroso despojou a prosa das frases-sucata, da verborragia enfadonha. Em troca, nos deu textos de prazer, como a epígrafe do livro Movimiento Perpetuo (1972): A vida não é um ensaio, embora tratemos de muitas coisas; não é um conto, embora inventemos muitas coisas; não é um poema, embora sonhemos muitas coisas. O ensaio do conto do poema da vida é um movimento perpétuo; exatamente isso, um movimento perpétuo.

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