Acho que eu estava perto dos 50, quando começaram a me chamar de senhora. Acontecia principalmente com gente muito jovem. A atendente da padaria Pioneira, por exemplo, A senhora quer seu pão na chapa? Eu ficava meio chateada e pensava: Quando será que perdi a prerrogativa do você? Mas os anos voaram mais rápidos do que o Super-Homem.
Hoje todo mundo me chama de senhora. Gente dos 5 aos 96. Então não me importo mais. Até quando me perguntam Quem quer falar? Repondo Dona Fernanda. Assumi o senhora e o dona. Mais ainda, aceito idosa, terceira idade, velha, vale-refeição, vale-transporte, assento e filas preferenciais.
Porque tanto faz. São apenas palavras que nos denominam quando temos muito mais passado do que futuro. Não que eu acredite que os nomes sejam inocentes. Ah, isso não! Boa parte da língua portuguesa poderia ir para a operação Lava-Jato.
O fato é que meu tempo é curto para que eu o perca polemizando com o vernáculo, o governo, o síndico, a atendente da padaria. Isso também tem a ver com quebrar o espelho que reflete o outro. Pois na juventude, eu me importava caminhões com a imagem que os outros faziam de mim.
Nessa história de agradar, disse muitos mais sins do que nãos. Traduzindo: entrei em frias monumentais, apenas para garantir que me amassem. É claro que não funcionou! Pessoas nos amam por razões misteriosas. Não pelo que fazemos ou desfazemos. Precisei de meia dúzia de décadas para chegar a essa conclusão.
É evidente que o outro me interessa. Mas mais por ele mesmo. Não pela imagem que ele faça de mim. Outro dia uma amiga de faculdade – que não vejo há 35 anos – escreveu no Messenger que me recordava como uma pessoa pé no chão. Levei susto, porque me sinto sempre com os pés a alguns centímetros do solo.
Daí perguntei para outra amiga – que me conhece como ninguém – Você acha que eu sou um tipo pé no chão? Ela respondeu bate-pronto Acho. Fiquei matutando: Qual imagem é mais real? Aquela que os outros fazem da gente? Ou a imagem que cada qual faz de si mesmo?
Sei lá! Mas tem algumas coisinhas que eu sei. Cabeça na lua ou pé no chão, gosto de andar de carro à toa. Assim sem destino pelas ruas de Sampa. Também gosto de ler o jornal às 6 da manhã e decidir Amanhã não compararei mais. No outro dia lá estou lendo o jornal de novo. Gosto também de alguns gestos. Sendo o mais divertido deles, o dar de ombros. Dane-se a imagem é a excelência da minha idade.
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Bom dia, dona Fernanda!
Gostei muito da crônica de hoje. Eu vivo a estranheza do “senhor”. Cada vez mais, sou um senhor. Ainda estranho, sem tormento. Homens escapam de tratamento equivalente ao “dona”. Aqui em Minas, não somos “tiozinhos”, que acho horrível.
Sigo bem. Cada vez menos me preocupo com a imagem que fazem de mim. E sou menos rigoroso comigo mesmo. O tempo e a vida me acalmaram.
Bela crônica. Vou reler e pensar mais. Bjs.
Antônio
Antonio, que bom que você gostou, pois gosto muito do que você escreve também! Esta coluna 50+ será semanal, todas as segundas-feiras, com exceções de praxe. A ideia é falar das coisas que impactam a vida de nós, os experientes, ou experimentados (como queira). Concordo com você: “O tempo e a vida nos acalmam”. O que é incrível! Super obrigada. Beijo.
Excelente crônica, como sempre, Fernanda!
Se te servir de consolo fui chamada de senhora pela primeira vez as 23. E não houve interrupção até hoje no modo de tratamento que recebo. Também pudera, ostentava um barrigão: uma criança esperando outra! Depois era porque estava sempre puxando uma criança pela mão, depois duas e a “senhora” se tatuou em meu rosto, corpo, modos e papéis. Depois de um tempo já não importa mais mesmo. Vejam como quiserem, pensem o que quiserem. Eu continuo sendo eu. Beijos.
É engraçado, Marisa, que seu comentário complementa a crônica. Como se fizesse parte orgânica dela. Adoro isso. É fato, somos nós mesmos. O tempo todo. Quando meu saudoso pai estava na UTI (2 meses antes de morrer), ele não respondia quando eu falava “pai”. Aí a enfermeira experiente me disse: chame pelo nome dele. Eu então falei: Marcus! Ele abriu os olhinhos para mim. Pensei: Nossa, antes de ser qualquer coisa (inclusive meu pai) ele é o Marcus. Para mim, foi aprendizagem dolorosa. Mas verdadeira. Um beijo da dona Fernanda.
Obrigada por partilhar conosco suas prendas mais íntimas.
Dona Marisa
Marisa, você é uma linda!
Dona Fernanda,
Obrigada, vou andar por aí também sem lenço e sem documento.
Dona Marilda
Marilda querida, sem lenço, sem documento, seu banca de jornal, sem coca-cola. Só ao lado do sol. Obrigada, amiga.
Gostei muito do seu texto. Também vivi a estranheza de ouvir “a senhora… “ ,assusta no início, parece que quando olhamos no espelho ainda vemos a jovem de antes mesmo que a imagem dele seja diferente. Passei a prestar mais atenção no espelho, mas finalmente entendi que a fase que estou hoje é só mais uma fase, a maturidade tem coisas muito boas e outras não, como todas as fases anteriores, pra mim o importante é viver bem a fase em que estou e ser feliz no aqui e agora.
Ivana, é isso mesmo: somos fases. Se eu pudesse teria congelado na juventude. Mas como não existe isso, o lance é aproveitar as potencialidades da idade madura. Beijo grande.
Querida Dona Fernanda,
Que delícia de crônica! Eu também estranhei quando começaram a me chamar de “senhora”, e ainda estranho… Mas a indiferença ao julgamento alheio é um preço pequeno da liberdade a se pagar pelos cabelos brancos de quem ultrapassa os 50.
Beijos saudosos
Corrigindo: os cabelos brancos de quem ultrapassa os 50 são um preço pequeno a se pagar pela liberdade e indiferença ao julgamento alheio.
Cecilia querida, adorei encontrá-la na área dos comentários. Toda razão: todo preço é pequeno quando o assunto é a liberdade. Beijo, querida e obrigada pela leitura. Sempre.
[…] abri a porta para a rua. Sorri. Lá fui para a padoca Pioneira na rua Macuinis – a dos meus cafés da manhã. – Dona Fernanda, estava sumida. – Viajando. – Ah, é bom sair, […]