Maria Lúcia da Silva, a Lucinha, não transita pelos movimentos feminista e negro em brancas nuvens. Muito ao contrário. Ela é o tipo de pessoa que faz e reflete. Reflete e faz. Psicoterapeuta, especialista em mediação e trabalhos em grupos, com recortes de raça e gênero. É uma das fundadoras do Instituto AMMA – Psique e Negritude, ONG que trabalha o racismo sob a lupa psicossocial. A ênfase desse trabalho são os efeitos psicossociais do racismo. As passagens em itálico são da Lucinha.
Nos últimos anos, essa filha de Jordelina, Antônio e Oxóssi tem coordenado, Brasil adentro, oficinas que tratam de um tema nevrálgico e fundamental – a violência das instituições. O bom de conversar com quem trilha um caminho aplicado é que aprendemos a ver com mais profundidade e aumentamos nossa capacidade de fazer associações. Lucinha Silva, depois de anos de estudos e de práticas, fala com acurada propriedade acerca da violência dos outros e da nossa: O que está em jogo na violência é a dominação. Pessoas ou instituições lançam mão da violência, como ferramenta, para subordinar, enquadrar e dominar aqueles e aquelas que fogem do figurino. Ou seja, os diferentes. Dependendo da sociedade e do contexto, o diferente pode ser o negro, a mulher, o velho, o imigrante. Ou um conjunto de segmentos.
Ela dá exemplos: Na violência de gênero, o dominador determina qual o lugar – que ele decidiu – que a mulher deve permanecer. Cabe a ela cuidar mais dos filhos do que ele. Cabe a ela ganhar menos dinheiro do que ele. Na violência racial, o branco insiste em apontar onde o negro deve estar. Tudo bem se o negro for o porteiro, ou a empregada doméstica. Mas o negro ser o diretor da empresa ou a patroa nem pensar.
O raciocínio se correlata a como os adultos tentam dominar as crianças, prendendo-as no que eles consideram como universo infantil. Também quando os mais jovens se relacionam com os velhos, tratando-os como superados ou mesmo inúteis. Mas Lucinha alerta: Há velhos que veem os jovens como imaturos ou irresponsáveis. O importante é refletirmos nos porquês das relações – de gênero, de raça, de geração, de classe – descambarem para situações e percepções violentas.
Ela avisa que não adianta procurar um único culpado pela violência: Não existe um vilão, é mais uma legião de fatores. Entre eles, há sim um dragão. Ele não solta fogo pelas ventas e atende pelo nome de imaginário social. O imaginário social tem força concreta sobre as nossas ações e reações. Ele traz no seu DNA uma incrível capacidade de reproduzir estereótipos. Entre os estereótipos mais comuns: as inferioridades dos negros e das mulheres quando comparados aos homens brancos. O imaginário social não é algo construído lá atrás e estático. Ele é renovado cotidianamente pela linguagem, pela cultura da rua, pelos conteúdos da mídia.
Ela tem razão. Nós somos o que escolhemos ser, mas também o que decidiram por nós. O indivíduo é configurado pela comunidade; a comunidade é configurada pelos indivíduos. Um alimenta o outro: Se a gente quiser de fato transformar o que existe, precisamos retrabalhar os conteúdos. Olhar bem de perto palavras e imagens, sem restrição de área. Os profissionais necessitam retrabalhar os conteúdos da publicidade, do jornalismo, das telenovelas, dos discursos políticos. A linguagem não apenas representa, ela engendra nossa visão de mundo. Mundo que não é estanque. É sistêmico. De pouco adianta uma professora falar da contribuição da população negra em sala de aula, se os livros didáticos, usados pela turma, tratarem as pessoas negras como secundárias.
Ela lembra que com as mulheres acontece algo parecido: Do mesmo jeito, não adianta alardear a presença das mulheres em todos os espaços públicos, se as publicações comerciais, os programas de TV continuam retratando-as como coadjuvantes das ações dos homens. Elas aparecem como a secretária, a assessora, a aeromoça, a torcedora, a grande amiga.
O que a psicóloga Lucinha tem certeza é do poder do inconsciente sobre nossa ações diárias: Muitas vezes, empregamos a violência do preconceito e da discriminação de forma não racional. Pergunte a um racista por que ele é racista. Ele ou negará, ou não explicará. O mesmo fenômeno se dará com os machistas, homofóbicos etc. O desprezo pelo diferente nasce de uma profunda falta de autoconhecimento. Podemos acrescentar que também apoia-se na ignorância e no medo.
Nascida na paulista Mirassol (467 km da capital), Lucinha veio com três anos para São Paulo. Na capital paulista traçou sua vida. No ano de 1988, ela e um grupo de amigas e ativistas fundaram o Geledés – Instituto da Mulher Negra. ONG que é referência para o movimento negro. Depois de muito aprendizado e algumas discordâncias, Lucinha deixou o Geledés, mas não o ativismo: A gente deixa uma embarcação, mas não desiste da viagem. Fui atrás de uma compreensão sociopsicológica das discriminações e de seus efeitos sobre os discriminados.
Nesse caminho, coordenou, ao lado de Jussara Dias, várias oficinas e publicações de relevância. Entre elas, Psique e Negritude – Os Efeitos Psicossociais do Racismo, editada pela Imprensa Oficial, em 2008. Sua pesquisa nunca foi só teórica. Por ser uma mulher negra, vivencia na pele escura os dardos do preconceito: Faz uns cinco anos, morava em um prédio no centro de São Paulo. Havia uma vizinha branca que se negava a entrar no elevador quando me via dentro dele. Acho que ela preferia subir de escada.
Continuando com o tema da violência, Lucinha atenta que ela não é exclusivamente física: A violência tem dimensões psicológica, econômica, política, intelectual. Sempre mantendo no seu cerne o objetivo de eliminar o outro, seja simbólica ou fisicamente.
Dar tiro e pancada é violência. Desqualificar e excluir também. Ela dá um exemplo que passa despercebido para muita gente boa, a supervalorização do diploma universitário sobre os saberes informais. No Brasil, país de doutores, quem tem diploma acaba desqualificando quem não o tem: Muitas vezes, uma negra velha de 72 anos dá de 10 a 0 em um universitário, ela alfineta – e completa: Sabedoria de vida é currículo que todos têm, mas, na ditadura das titulações, muitos saberes são deixados à margem. Ora, toda a sociedade perde com isso.
Assim como fica atrás dos panos a violência entre iguais. A ativista do movimento negro e feminista de quatro costados tem uma visão crítica acerca do que sucede, com frequência, nas ONGs, nos partidos, nos grupos: A violência é um estado fluido. Cada pessoa carrega a sua verdade, que tem a ver com suas escolhas políticas e com suas crenças. Dentro de grupos, mesmo com objetivos comuns, alguém pode discordar. Aí é um deus nos acuda. De repente, aquele ou aquela que discordou será desautorizado e fica pronto para ser excluído.
A saída, segundo ela, é tentar desconstruir as relações violentas. Para isso, ajuda compreender como se dá a violência institucional – essa exercida pelas instituições. O Estado é violento, porque existe para cuidar de todos, mas atende de forma desigual aos segmentos sociais: Na prática, sabemos que existe uma justiça para os pobres e outra para os ricos. O acesso aos bens comuns não é igual para todos etc.
Mas é importante ressaltar que tudo começa na família, e não poderia ser diferente. A família é o lugar no qual experimentamos as primeiras experiências, entre elas, a violência: Como um espaço institucional, a família espelha o que o país e a cultura estão gerindo. Enredada no mundo, a instituição família ressente-se da violência externa e, ao mesmo tempo, provoca violência interna. Tudo isso por meio das imagens e conceitos que as gerações vão interiorizando.
Lucinha reflete, dá exemplos: É na família que aprendemos que a mulher tem que se sentar com as pernas fechadas. Aprendemos e ensinamos que as meninas devem cuidar da casa, ser cordatas e harmônicas. Independentemente se terão uma profissão, o lar é responsabilidade delas. Em contrapartida, os meninos aprendem a ser homens. Ser homem significa, entre outros atributos, expressar sua agressividade. Sua vontade.
O imbróglio fermenta quando lembramos que a agressividade é constituinte do humano. Ela está presente em homens e mulheres. Mas as meninas são ensinadas a reprimi-la, e os meninos a expressá-la: Mulheres devem ser boazinhas. Já os homens, depende da situação. O aprendido na família continuará vida afora. Não é exagero dizer que somos, também, o que as instituições fizeram com a gente.
A escola é outro espaço fundamental para nossa formação de violentos: Certamente, não deveria ser assim. A escola, por definição, deveria ser o lugar para a criança se socializar e se desenvolver. Porém, acaba sendo um espaço de violência, na medida em que está dividido entre homens e mulheres, negros e brancos, adultos e crianças.
Lucinha enfatiza: O problema não está na diversidade. O problema está na desigualdade, no não diálogo entre as diferenças. É na escola que a criança negra se defronta com lições de desvalorização racial. Via de regra, aprenderá que vale menos do que os colegas brancos. Isso pode se dar de maneira sutil. A desatenção de uma professora, a falta de estímulo de um professor, o comportamento preconceituoso de um colega, as entrelinhas dos livros didáticos etc. Temos que recordar que crianças são anteninhas. E também que: Os professores são aqueles que possibilitam que a criança projete imagens positivas ou negativas acerca de si mesma. Ora, nem sempre os professores estão sensibilizados ou preparados para lidar com as tensões de uma sociedade dividida, na qual uns se sentem superiores a outros.
Outra instituição violenta, na qual passamos boa parte de nossas vidas, é o trabalho. Mesmo com o inegável avanço das mulheres no mercado, mesmo com sua expressiva presença nos espaços públicos, elas ganham menos do que os homens e são preteridas no topo das hierarquias: Situação similar ocorre com a população negra brasileira. Negros e mulheres são as maiores vítimas da violência no trabalho, traduzida em salários risíveis, menos oportunidades, assédios, descontinuidades de carreiras.
Ela tem algumas ideias de como começar a transformar essa situação. Esse é o tema de suas oficinas de sensibilização para detecção, prevenção e questionamento da violência institucional – esta que nasce na família, se desenvolve na escola e amadurece no trabalho, sob o olhar permissível do Estado: O grande obstáculo para mudar essa situação está na dificuldade das pessoas admitirem que muitas de suas ações e reações vêm do inconsciente. Também há uma tremenda resistência a admitir os preconceitos. É por isso que ganhamos a fama de ser um país racista sem racistas. Uma sociedade machista sem misóginos, e assim vamos.
Maria Lúcia da Silva dá um recado certeiro: Sempre há soluções. Pois nenhum problema nasce irresoluto. O caminho é longo e árduo. Ele depende do esforço individual e do comprometimento da sociedade. A resolução está nas mãos de cada um e de todos nós. É tudo ao mesmo tempo. Todos estamos em processo de crescimento contínuo. Ninguém está pronto. Mudanças de mentalidade e de comportamento exigem tempo. O importante é começar de alguma maneira.
Para Lucinha, todos esses pensamentos se ligam ao conceito de paz. Ela tem horror à associação entre paz e pombinhas brancas, entre paz e silêncio. Bem ao contrário, para ela, paz é agitação, é caminho: Fico muito preocupada quando falam em tolerância. Tolerar significa aturar, suportar. Ou seja, a tolerância está a um passo da violência. É como se vivesse no limite. Muito mais apropriado é trabalharmos com a palavra respeito. Eu não preciso gostar do diferente, mas tenho que respeitar sua existência. Melhor dito, tenho que respeitar seus direitos que, aliás, devem ser iguais aos meus. Respeitar a diversidade e suas expressões é o grande desafio para os indivíduos e as sociedades no século 21.
Entrevista realizada em 2010 para a o livro Mulheres Fazendo Pazes, da Associação Mulheres pela Paz.
Grande Lucinha, fazendo a diferença no mundo, para que ninguém seja menos
Pra que ninguém seja menos. Beijos, minha Bel.
Maravilhoso o texto. Parabéns Lúcia.
Angela, querida. Sempre atenta, né? Beijo grande.
Adorei a entrevista. Maria Lúcia da Silva, a Lucinha, é pura reflexão feminista de uma perspectiva psicológica e sociológica sobre a condição das mulheres negras no Brasil e sobre a crueldade e gravidade do racismo. É sempre original nas suas narrativas. Expressa reflexões complexas de maineira simples, o que não é trivial. E Fernanda Pompeu sempre traduzindo nas suas entrevistas a arte de escrever e editar. Adorei!
Jares, bem-vinda ao Fernanda Pompeu Digital. Assino embaixo das suas palavras sobre a entrevistada. Ela é especial mesmo. E obrigada pelas boas palavras para a entrevistadora. Estamos Juntas. Beijo.
Que texto incrível. Rico em termos de esclarecimentos e posturas de intervenção. Muito grata!
Obrigada. Abraço.
[…] é conviver com a diferença. Uma sólida educação forma cidadãos críticos. Se a pessoa aprendeu o racismo em casa, e está exposta a falas e atitudes não racistas na escola, ela vai ter argumentos e […]