Cosme e Damião tinham dez anos. Eram filhos da Hilda, empregada da família. Gêmeos nascidos e criados em Nova Iguaçu, capital informal da Baixada Fluminense. Muitas vezes, Hilda, por não ter com quem deixá-los, vinha com eles para a casa da Tijuca. Então passei minha infância convivendo com os dois irmãos.
Sentia inveja do trajeto dos três no trem de subúrbio que parava na suntuosa Estação Central do Brasil. Na minha imaginação, eles eram as pessoas mais livres do meu minguado círculo de relacionamento.
Eu, meus irmãos e primos tínhamos os dois como parceiros de jogos e brincadeiras. Numa manhã de 40 graus, Damião e eu entramos debaixo do chuveiro. Pelados e mais ou menos inocentes, fomos flagrados por Hilda. Levamos um tremenda bronca e começamos a desconfiar que banho era coisa errada.
Com os gêmeos aprendemos a camaradagem infantil e a cumplicidade entre amigos. Juntos delirávamos ao assistir, às 10 da matina, ao Nacional Kid – herói japonês do tempo da televisão preto e branco e chuviscada. Os Incas Venusianos eram os inimigos de Kid e todos nós.
Damião e Cosme não iam à escola. Eram só dois meninos negros, filhos da cozinheira, no Rio de Janeiro dos anos 1960. Nas projeções de futuro das crianças brancas: uma irmã queria ser professora. Eu, escritora. Outro, não me lembro mais o quê. Mas todos queriam.
Nesse assunto, os gêmeos ficavam em silêncio. Talvez Cosme intuísse que iria, como seu tio peão, carregar tijolos na construção civil. Damião, apesar de sonhar em ser Nacional Kid, entendia que sem somar uma letra à outra não teria chance de escolher.
Por que, diabos, lembro tudo isso? O Brasil melhorou. Passaram-se mais de 50 anos. Não faço ideia do que aconteceu com os gêmeos. Nem com a Hilda. Qual o motivo de contar essa pequena história? Remorso.
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Maravilhosa Crônica, que conta um pouco da minha história de vida, levando-me às lágrimas.
Nossa história, querida Wania.
Gostava de doces e andava longe onde ouvia que estavam os doces.
Lembrar é uma forma de presença. Acho eu. Obrigada, Júlio.
Leio posts antigos e adoro!
Qual o motivo do remorso? Era uma menina e o alcance quanto ao futuro do Cosme e do Damião ainda não estava amadurecido.
Abraços
Silvana, sei lá. Sinto remorso hoje. Beijo.