Juan Rulfo: menos é tudo

Esse costume de falar é das grandes cidades. No campo, ninguém fala.

Fonte: Google Fonte: Google

O escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986) publicou um pouco mais de trezentas páginas e silenciou. Apesar da economia de palavras, seu livro de contos O Chão em Chamas é um primor e o romance Pedro Páramo, obra-prima.

Escritores se dividem ou coincidem em várias idiossincrasias. Há os que adoram aparecer, os que se escondem como ladrões. Os que opinam sobre tudo, os que não abrem a boca para nada. Há também os que se queimam na fogueira das vaidades e os que viram sombras no ostracismo. Para os leitores, o que importa é se seus livros são bons ou ruins. Pois, nem sempre a celebridade é talentosa. Muitas vezes quem brilha é o caramujo.

Juan Rulfo, nascido em Sayula, Jalisco, México, tem o perfil perfeito do escritor-caramujo. Depois de realizar uma obra-prima, passou os trinta anos restantes de vida sem publicar nada. Sua concisa produção foi admirada por grandes mestres e intelectuais de ponta, a exemplo de Jorge Luis Borges e de Susan Sontag. Seus dois únicos livros O Chão em Chamas (El Llano en Llamas) e Pedro Páramo mereceram numerosas reedições, traduções para diversos idiomas e uma vasta fortuna crítica. Em uma pesquisa do badalado diário madrileno El País, realizada em 1999, Pedro Páramo foi o mais citado entre os dez melhores romances em língua espanhola do século 20.

Dando oxigênio para o mito, Rulfo especializou-se em esquivar-se de curiosos, admiradores e jornalistas. Detestava conversas: Esse costume de falar é das grandes cidades. No campo, ninguém fala. O taciturno preservou com sucesso sua intimidade. Casou-se com Clara, a quem dedica O Chão em Chamas; teve filhos; foi funcionário público; vendeu pneus. Dados franzinos para uma biografia.

Em suas raras entrevistas, a infância é o período recorrente. Seu pai foi morto por um assaltante, quando ele tinha seis anos. A mãe faleceu dois anos depois. Sobraram ele e três irmãos. No conto Nos deram a terra, desabafou:

Somos quatro. Eu conto: dois na frente, dois atrás. Olho mais longe e não vejo ninguém. Então digo para mim mesmo: somos quatro.

Na infância, em povoados contíguos à Sierra Madre, Juan presenciou anos de violência continuada. Nasceu em meio à revolução mexicana (1910-1929) que combateu a ditadura dos latifúndios. Testemunhou a guerra Cristera (1926-1929), deflagrada pelos que eram contra a subordinação da Igreja Católica ao Estado laico. Em suma, conviveu com a morte rotineira.

O melhor dos primeiros anos foi a descoberta dos livros e do prazer da leitura, que ele saboreará até morrer. Aos dez anos, teve acesso à biblioteca do padre que, arvorando-se censor de livros, confiscava volumes dos fiéis para enriquecer seu acervo particular. O garoto pôde devorar romances, crônicas de viajantes, ensaios. Ler era sua grande aventura, mesmo porque se saísse às ruas poderia ser rastreado por uma bala perdida.

Murmúrios em chamas
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Talvez  essa seja uma das mais famosas aberturas de um romance do século 20. Há um poderoso imã nessa frase que convida o leitor a acompanhar Juan Preciado na sua procura. Aceito o convite, o leitor demorará poucas páginas para levar um tremendo susto: pois todos em Comala estão mortos, inclusive Juan Preciado.

Pedro Páramo foi publicado em 1955, na Cidade do México, com uma tiragem de 2 mil exemplares. Antes de optar pelo título definitivo, Rulfo pensou em chamá-lo Murmúrios. O que também seria acertado, uma vez que o romance é construído por vozes de almas penadas.

A história, que ocupa menos de duzentas páginas, se abre a múltiplas interpretações. Pode ser a história de um coronel desalmado e apaixonado ao mesmo tempo. Pode ser a história de mais um órfão latino-americano. Quem sabe a história de uma terra abandonada por Deus e pelo Estado. Ou mesmo a história de todos os moradores de Comala, anjos e demônios, igualmente perdidos e sem salvação.

O desconcertante é que são os mortos que sussurram as memórias de sangue, autoritarismo, submissão, paixão, descompaixão e loucura. Segundo Rulfo, dar voz aos mortos foi a razão de sua liberdade narrativa:

Como os mortos não vivem nem no espaço nem no tempo, eu pude manejar com desenvoltura as personagens. Elas aparecem e desaparecem, estão indistintamente no passado e no presente.

Jogada de exímio enxadrista: oferecer um tratamento fantástico para um tema realista. Resultado inequívoco: lemos o romance como se sonhássemos. Igual a Macondo do Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, Comala não existe na geografia real. Apenas sabemos que é uma terra interior, desolada e quente como brasa. Aliás, Rulfo explica como inventou o nome, trata-se de uma derivação de comal – recipiente que sobre as brasas esquenta a tortilha – , alimento-base dos mexicanos.

Ler Pedro Páramo vai muito além do entretenimento. É uma experiência. Impossível ser a mesma pessoa depois de mergulhar na riqueza de suas personagens, na urgência do que contam por meiro de sequências que dão saltos de tirar o fôlego. Seus parágrafos desafiam a linearidade narrativa e mantêm nossa imaginação incendiada.

Vozes do silêncio
Em 1953, dois anos antes da publicação de Pedro Páramo, saiu do prelo o livro O Chão em Chamas que reúne dezessete contos, entre eles, Luvina citado e recitado pelas décadas seguintes. A exemplo do romance, os contos de Juan Rulfo realizam um dos maiores anseios da literatura. Qual seja, dizer muito com poucas palavras. Economia de meios e resultados em fartura.

Mais ainda, a prosa do mexicano está cheia de silêncios. Suas frases são enxutas, seus  diálogos cortantes. As personagens dizem o preciso, os leitores complementam. Alguém já escreveu que os adjetivos existem para não serem usados. Rulfo não só acredita nisso, como põe em prática. Sua prosa é o território do substantivo, onde os adjetivos são parcos.

Um substantivo sem o ruído de um adjetivo é a palavra em silencio. Ao falar do romance, o autor diz: A estrutura de Pedro Páramo é feita de silêncios, de fios suspensos, de cenas cortadas; a ação ocorre em um tempo simultâneo que é também um não tempo.

Sua prosa tem muito do bom cinema. Ele descreve pouco, a gente vê tudo. Quando ele fala do vento, sentimos na pele. Quando ele cita a poeira, coçamos o nariz. O tempo da narrativa salta, volta, avança, retorna. Seus parágrafos são autênticos planos-sequência fechando-se em si mesmos.

Rulfo universaliza. A Comala mexicana pode existir em qualquer país. As almas penadas do povoado são pedacinhos de todos nós, os vivos. As perplexidades de Juan Preciado, Dorotea, Eduviges, Pedro, Susana, padre Renteria são nossas. Também é nossa a violência que perpassa as relações históricas, econômicas e de gênero.

A palavra seca de Juan Rulfo foi plasmada, em grande parte, enquanto ele trabalhava no Arquivo Público da Cidade do México. Foi o lugar perfeito para criar personagens e dar vida a histórias. O escritor declarou:

Ninguém invejava os funcionários do Arquivo, os governos passavam, nós seguíamos lá”. Juan pôde então formatar ideias que o rondavam: “Quando decidi escrever me salvei, pois trabalhar na burocracia estava me enchendo de retórica”.

Depois de Pedro Páramo, Juan Rulfo não publicou mais nada. Despistou jornalistas e críticos literários. Para o deixarem em paz, dizia escrever um novo romance La Cordillera, que nunca ninguém viu. Seguiu apaixonado pelas letras. Redigiu argumentos para o cinema, sendo um deles, O Galo de Ouro, de grande beleza. Fotografou paisagens do México, cuidou das publicações do Instituto Nacional Indigenista.

O escritor Juan José Arreola, autor de vasta obra e amigo de Rulfo, contou: Juan praticava a mentira como forma literária. Ele gostava de desorientar os que se aproximavam. Existe melhor definição para um romancista do que a de mentiroso? Mentir por meio da ficção para que a verdade apareça. Muita lenda, poucos fatos? Seja lá como for, não precisamos saber tanto da vida de Juan Rulfo. Se foi marido fiel, bom pai, cidadão atuante. O importante já sabemos, ele nos deixou contos em brasa e uma obra-prima. Precisa mais?

Brinde


Tags: , , ,

Comente

6 respostas para “Juan Rulfo: menos é tudo”

  1. Avatar Lili Reinert disse:

    Quero ler! Obrigada pela dica, Fernanda!

  2. Fernanda, bom dia! Obrigado pela dica! D+ sua análise! Estou indo atrás dos dois livros amanhã!!

    • Fernanda Pompeu Fernanda Pompeu disse:

      Bom dia, Thiago! Olha só, existe uma edição que traz Pedro Páramo e o Chão em Chamas em um só volume. Vale a leitura e o prazer. Aproveito para perguntar: você quer receber a newsletter do site uma vez por semana? Abraço.

Deixe uma resposta para Fernanda Pompeu

Antes de enviar, por favor resolva a questão: *