Mario de Miranda Quintana (1906-1994), gigante passarinho, é poeta para ser lido nos bares e nas salas de aula. Foi pessoa de primeira grandeza e escritor de alta qualidade
Não deve ser à toa o poeta ter nascido na gaúcha Alegrete, que tem entre seus significados o de pequeno canteiro para plantas. A nutriente obra de Mario Quintana tem mesmo a ver com canteiros e com plantas. Foi boa a terra que fez germinar seus sonetos, quadras, hai-kais, aforismos, prosa poética, frases inesquecíveis. Seus textos são flores sem perfumes artificiais.
Mario Quintana ganhou a vida suando a caneta. Excetuando breve momento em que trabalhou na farmácia do pai, ele labutou e lapidou palavras próprias e alheias. Grande tradutor deu a conhecer, em português, Voltaire, Proust, Balzac, Conrad, Virginia Wolf, Giovani Papini. Ao todo, traduziu mais de 138 livros.
O gaúcho de Alegrete também correu atrás de proteínas para seus magros rendimentos de trabalhador da palavra poética, colaborando com jornais e revistas. Acerca de sua saúde financeira, ele a definia: É como um carrossel, cavalinho sobe, cavalinho desce.
Por vários anos, ele frequentou a redação do Correio do Povo, em Porto Alegre. Nesse jornal, assinou a famosa coluna Caderno H e se consagrou como um dos maiores frasistas do país: Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem” – é uma de suas joias, hoje de domínio público.
No entanto, a poção de eternidade que Mario nos legou foi sua poesia. Curta, certeira, graciosa: Todos esses que aí estão / Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!. Curta, certeira, melancólica: Da primeira vez que me assassinaram/ Perdi um jeito de sorrir que eu tinha / Depois, de cada vez que me mataram, / Foram levando qualquer coisa minha.
Dose certa
O livro de estreia foi publicado em 1940. Rua dos Cataventos traz 35 sonetos. Começa com os versos: Escrevo diante da janela aberta. / Minha caneta é a cor das venezianas:/ Verde!… E que leves, lindas filigranas / Desenha o sol na página deserta!
Depois viriam outros livros, outros quintanares em versos e prosas. Todos com a marca registrada da liberdade Quintana. Ao contrário de muitos poetas do século 20, Mario não se filiou a grupos de escritores ou a correntes estéticas. Os ismos que praticou, segundo suas palavras, foram o tabagismo e o alcoolismo. Tudo por conta e risco próprios.
Observador minucioso do cotidiano, ele pôs o que quis em seus poemas. Relógios, passarinhos, calçadas, amores, mortes, risos, assombros, televisão, dentaduras, espelhos transitam por suas linhas com total soltura. Escreveu acerca daquilo que está embaixo do nosso nariz, mas com uma visão tão surpreendente que modifica o nosso olhar. Deus criou este mundo. O homem, todavia, / Entrou a desconfiar, cogitabundo…/ Decerto não gostou lá muito do que via…/ E foi logo inventando outro mundo.
Talvez os anos trabalhados como prático de farmácia tenham ditado a Mario o caminho das pedras do fazer poético: escrita na dose certa para não matar de tédio o paciente leitor. Como o bom fotógrafo que só enquadra o que interessa, Quintana deixa para fora de seus textos tudo o que aborrece, notadamente a veborragia.
O Feiticeiro
Mario Quintana morreu aos 88 anos incompletos. Ele não experimentou a celebridade que a mídia confere aos intelectuais de grife, nem a imortalidade da Academia Brasileira de Letras que, por três vezes, não votou nele. Mas, nos últimos anos de vida, recebeu o reconhecimento e o carinho de seus leitores, ricos em sensibilidade.
Um deles, o ex-jogador Paulo Roberto Falcão, praticou solidariedade concreta. O velho poeta se viu, aos 78 anos, desempregado e sem pouso. Falcão, então proprietário do Hotel Royal, no centro de Porto Alegre, cedeu um quarto para o Mario morar e escrever.
A habitação funcionou como um galho para o passarinho repousar. Durante o dia, Quintana andava para cima e para baixo da Rua da Praia. Exercitava seu trabalho: observar e fruir o que estava em volta. Pessoas, objetos, natureza. Durante à noite, sempre de madrugada, presenteava o papel e os leitores: Não sei / o que querem de mim essas árvores / essas velhas esquinas / para ficarem tão minhas só de as olhar num momento.
Ventura nossa ter o prazer de ler o passarinho que uma vez piou nos nossos ouvidos: Basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira.
Publicado originalmente no Sateljornal, sob edição da Carminha Fernandes.
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MUITO LINDO!
Obrigada, Ivana. Sempre companheira. Beijo.
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Muito lindo uma poetiza escrevendo sobre um poeta maravilhoso e maravilhoso tudo os dois poetas juntos.
Oh, Cristina. Generosidade sua. Valeu, beijo.