Caprichada e garantida

Numa ilha do Amazonas

Foto: Ed Viggiani Foto: Ed Viggiani

Artistas, costureiras, soldadores e desenhistas manejam ferro, madeira, isopor e tecido. No galpão do boi Garantido, o do coração vermelho, todos se esmeram (nunca usam o verbo caprichar) para preparar um espetáculo que supere o do rival. Em 2007, foi o Caprichoso, o da estrela azul, o ganhador da disputa de bois-bumbá do famoso Festival de Parintins, que todo final de junho atrai cerca de cem mil pessoas para a doce ilha situada na margem direita do rio Amazonas. No curral da torcida caprichosa, “alegoristas”, passistas e percussionistas preferem não dizer que uma nova vitória está garantida. Dizem, sim, com todas as letras, que está “assegurada”.

Os redutos dos dois bumbás ficam em lados opostos de Parintins. A cidade, dividida pela catedral de Nossa Senhora do Carmo, de um lado tem casas, bares e até orelhões pintados de rubro. Do outro lado, o reino é do azul. Parintins é o único lugar do mundo onde você pode escolher entre tomar Coca-Cola em uma latinha azul ou vermelha. A divertida rivalidade não para nas cores. Os adeptos de um boi não dizem,  mesmo sob tortura, o nome do oponente. Um se refere ao outro como “o contrário”.

Os parintinenses, gente de extraordinária hospitalidade, trazem no DNA a brincadeira do boi. Para quem vê de fora , a folia parece uma mistura do carnaval carioca (pelas fantásticas alegorias) com o nordestino (pelo ritmo dado pelas toadas). A mistura também está nos elementos que cada boi leva ao “bumbódromo” na época das apresentações e que costura influências indígenas às caboclas e às afro-brasileiras.

Cerca de quatro meses antes da festa, Parintins se transforma num canteiro de obras. Jair Mendes, 65 anos, mestre dos mestres das alegorias articuladas, já foi Garantido e hoje é Caprichoso. Começou seu trabalho no quintal de casa há trinta anos. Atualmente tem dezenas de seguidores. Só tinha eu, hoje há dezenas de discípulos de meus discípulos, diz Mendes. Professor e alunos são continuamente requisitados para levar sua arte às principais escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo.

A cidade se orgulha de ser parideira de talentos. Os bois mantêm escolinhas de arte formando crianças e adolescentes em dança, música, desenho e pintura. Aqui quem não sabe, aprende. Quem é bom, se torna melhor, diz o alegorista do Caprichoso, Rossi Amoedo. Para ele, os galpões são universidades de campo, onde os interessados se aprimoram fazendo e vendo fazer.

Embora o boi de pano seja o grande astro da festa, pergunte a um caprichoso ou a um garantido quem é o personagem (também chamado de item) mais importante do espetáculo. Eles responderam que todos ali são iguais em valor. Maria Auxiliadora, 58 anos, é zeladora do curral do Caprichoso e traduz a paixão pelo boi-bumbá: Eu varro, ajudo a empurrar cadeiras, e até a movimentar o boi. Também sou componente da marujada, que é o item coletivo de ritmistas, conta orgulhosa.

Rivalidade e Amor

Por toda a ilha, há casais batizados de Romeu e Julieta, em referência às duas famílias inimigas da mais cantada história de amor e de dor do mundo ocidental. A balconista Val e o ambulante Marcos amam bois contrários. Ela é azul. Ele, vermelho. Indagado sobre o que fazia no curral do Caprichoso em uma das noites de ensaio, Marcos justificou-se: Vim só acompanhar a Val.

Karyne Medeiros, 20 anos, porta-estandarte do lado azul, é filha de mãe Garantido e pai Caprichoso. Ela conta que quando recebeu a notícia que ostentaria o pavilhão do Caprichoso derramou-se em emoção. Mais do que isso, testemunhou o sonho de sua jovem vida se concretizar: Em Parintins, as meninas não desejam ser modelos nem artistas de TV. Sonham em ser um item dentro da festa do boi. A gente cresce pensando nisso.

O exemplo mais marcante é o dos irmãos Israel e Júnior Paulain. Israel é o apresentador do Garantido, enquanto o irmão, Júnior, apresenta a festa do contrário. Na arena do bumbódromo, na hora em que o universo se curva ao boi de pano, são concorrentes. Na vida cotidiana, se respeitam e se estimam.

Mantra Caboclo

A paixão pelos bois é tamanha que navega pelo Amazonas e chega à capital amazonense. O sambódromo de Manaus abre seus portões para os bumbás de Parintins cerca de dois meses antes da grande festa. Em sábados alternados, ensaiam o boi do coração e o boi da estrela. E não é porque se trata de uma preparação que a emoção das torcidas é menor. Em um dos ensaios do Garantido neste ano, em Manaus, a galera (como é chamada a torcida dos bois) foi ao delírio com a despedida da sinhazinha (um dos personagens da festa) Vanessa Gonçalves e a estreia de sua substituta, Ana Paula Ianuzzi.

O coro que acompanhou a passagem do reinado era uma toada, repetida como um mantra caboclo:  Sinhazinha bela, oh, oh,/ sinhazinha bela, oh, oh/ sinhazinha, sinhazinha da fazenda. Ao lado de Ana Paula com seu vestido rendado, o boi de pano contorcia-se em chamegos. Dentro dele estava o chamado tripa, o artista mais generoso da festa: ele não aparece para que o protagonista, o boi-bumbá, assuma o show.

No lado do Caprichoso, quem confecciona e veste o boi é Marquinhos de Azevedo, 40 anos, dezoito deles na função de tripa. Não é uma arte fácil, pois o boi finge comer sal, solta fumaça pelas ventas, se contorce, faz expressões de medo, bravura e ternura. O espetáculo que o tripa proporciona é tão fascinante que ele, na pele de boi, já se apresentou na Coréia do Sul, na Espanha, na Alemanha e nos Estados Unidos. Para ser tripa de boi é preciso cem por cento de preparo físico. O boi-bumbá pesa cerca de quinze quilos, diz o artista.

Garantido e Caprichoso se igualam na busca da excelência artística. Mas o encanto não cai do céu. É resultado de uma força-tarefa que inclui a contratação com carteira assinada, por cada boi, de mais de quinhentas pessoas pelo período de quatro meses. Outros milhares de empregos, diretos e indiretos, são gerados no setor de comércio, hotelaria, transportes e serviços. Estima-se que o festival movimente cerca de quarenta milhões de reais.

Para proporcionar o espetáculo dos bois, Parintins conta com a verba dos patrocinadores e com as vendas de direitos para a transmissão pela televisão e de ingressos. Na arquibancada geral, a entrada é gratuita, mas os assentos especiais e os camarotes custam de quatrocentos e vinte reais a trinta e seis mil reais pelas três noites de apresentação. Caprichoso e Garantido têm ainda o apoio dos sócios dos bois, que pagam uma taxa de oito reais mensais.

Às vésperas da festa, azuis e vermelhos ajustam os últimos detalhes para ver quem apresenta melhor seu tema. Seguindo um regulamento detalhado, os jurados – usando imparcial caneta verde para as anotações – escolherão o boi campeão. Ambos tratarão do desenvolvimento sustentável da Amazônia. Garantido apresentará O Boi da Preservação; Caprichoso puxará O Futuro é Agora.

Ao mesmo tempo, os dois encenarão a lenda da paixão e da ressureição do boi.

quase cem anos este é o fio condutor da folia: conta-se que Mãe Catirina estava grávida e tinha um desejo enorme de comer língua. Mas não podia ser qualquer língua. Tinha de ser a do boi mais bonito da fazenda. Pai Francisco mata a rês preferida de seu patrão para fazer a vontade da mulher. O amo do boi descobre tudo e, desesperado, chama um pajé para ressuscitar o animal. Ele revive. Mãe Catirina e Pai Francisco são perdoados. A história acaba numa grande festa. Como não podia deixar de ser.

Conheça Os Personagens Que Fazem a Festa:

1 Boi – Astro principal da festa. Quem dá vida a ele é o tripa.
2  Apresentador – É o anfitrião e mestre-de-cerimônias.
3  Levantador de toadas – Equivalente ao puxador de samba.4  Batucada ou marujada – É a bateria dos bois. No Caprichoso chama-se marujada, no Garantido leva o nome de batucada.
5  Ritual indígena – Grupo de passistas que realiza danças relativas aos rituais dos índios.
6  Porta-estandarte  Carrega a bandeira do boi.
7  Amo do boi – Na lenda contada no bumbódromo, representa o dono da fazenda e atua como repentista.
8  Sinhazinha da fazenda – Representa a filha do dono da fazenda.
9 Rainha do folclore – Moça que representa a diversidade de valores culturais da região.
10 Cunhã poranga – Moça bonita, representação de uma guerreira.
11 Pajé – É o curandeiro que faz o boi reviver.
12 Tribos indígenas – Dançam e fazem expressões cênicas.
13 Tuxauas – Representação alegórica dos universos indígena e caboclo da Amazônia.
14  Vaqueirada – São os guardiões do boi durante sua apresentação.
15  Galera – Como se chama a torcida de cada um dos bois. Cada uma fica de um lado do bumbódromo, como em um estádio de futebol.

Curiosidade: o primeiro parágrafo dessa matéria caiu na prova de vestibular para a USP.

FUVEST – Fundação Univ. para o Vestibular/2009

Língua Portuguesa

Texto para a questão Artistas, costureiras, soldadores e desenhistas manejam ferro, madeira, isopor e tecido. No galpão do boi Garantido, o do coração vermelho, todos se esmeram (nunca usam o verbo caprichar) para preparar um espetáculo que supere o do rival. No ano passado, foi o Caprichoso, o da estrela azul, o ganhador da disputa de bois-bumbá do famoso Festival de Parintins, que todo final de junho atrai cerca de cem mil pessoas para a doce ilha situada na margem direita do rio Amazonas. No curral da torcida caprichosa, “alegoristas”, passistas e percussionistas preferem não dizer que uma nova vitória está garantida. Dizem, sim, com todas as letras, que está assegurada.

Fernanda Pompeu. Caprichada e garantida.

As marcas lingüísticas e o modo de organização do discurso que caracterizam o texto são, respectivamente,

a) 

verbos no presente e no passado; descritivo-narrativo.

b) 

substantivos e adjetivos; descritivo-dissertativo.

c) 

substantivos; narrativo-dissertativo.

d) 

frases nominais; apenas narrativo.

e) 

adjetivos substantivados; apenas descritivo.


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3 respostas para “Caprichada e garantida”

  1. Avatar Silvana Moura disse:

    Que riqueza! Um dia, quem sabe, assistirei tudo bem de perto. E de forma garantida e caprichada!

  2. […] Vendo retrospectivamente acho que muitos de nós tínhamos um certo preconceito com a cultura popular. Ou, para não falar pelos outros, eu tinha. Demorei muitos anos para parar com essa besteira. […]

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