Mulher com olhos endemiurgados, há vontade neles, vem em direção à mesa – a sede ao pote, o oceano à praia – mas antes abre a grande janela do galpão para receber notícias do mundo, trazidas pelo vento no bico dos pássaros. Não sabemos o seu nome, porém as coisas na Terra têm um nome, vamos chamá-la Alegria. Filha e neta de carpinteiros, traz a linhagem da madeira; sua idade é a dos artefatos que faz.
Junto à mesa – que não é só de trabalho, que é o mundo -, Alegria vira artesã. Daí experimenta a sinergia entre o mago e a força, entre a artista e a fazedora, entre Dionísio e Apolo na intersecção de domínios autônomos. Com precisão cirurgiã retira da corbelha a goiva rasa: desbasta a superfície, rompe a casca. Despe o tronco, quer conhecer sem demora sua alma. Saber se é de boa cepa a matéria-prima de sua criação. Traça o mapa que a levará ao mistério, às pepitas, ao fogo cognoscível. Seu trabalho embarca em um trem fantasmagórico, passará pelas estações: Projeto, Abismo, Forma, até a libertadora Arte Final.
Alegria faz da plaina sua vontade incisiva, anima-se contra a dura matéria; seus dedos-vampiros cobiçam o cerne. Matéria e imaginação – a primeira tão pesada que foi necessário o machado para arrancá-la do solo, a segunda tão leve que é preciso forçá-la a existir. A artesã trata o formão com intimidade de mestra, com a mão direita imprime o método e com a esquerda, o devaneio. Não importa que o espírito tema, importa que os dedos – dez ases da artesania – creiam. A escritura na madeira vai bebendo a seiva de quem a manipula; o corte do cinzel no lenho rouba sonhos vegetais. Quem levará a melhor: a vontade criadora ou a inflexibilidade da matéria?
Duelo: matéria versus idéia; matéria versus instrumentos; matéria versus mão. A madeira resiste, a mão da artesã faz ceder. Estalido o tronco parte, fibras abertas, estilhas de cedro. A meta de Alegria é transformar em leveza o objeto que pesa; a seriedade do cedro em risada. Ela tem consciência de que quanto maior o delírio procurado, maior o trabalho a ser despendido.
Reciprocidade: a imaginação se alimentando do fazer, o fazer se alimentando da imaginação. Da mão surge a dança dos dedos, pantomima de toques. Nas mãos da marceneira outras: do padeiro do flautista do verdugo da amante. No diálogo com o tronco não há espaço para o verbo, a madeira se comunica silenciosamente com Alegria.
[…] nexos sintáticos, resultados semânticos. Aqui você deixa de ser cronista para se tornar carpinteiro. Cortar, lixar, polir. Pronto, agora é postar. O passo seguinte é com o […]