As mãos – Marisa Paifer

Texto da Marisa Paifer

Imagem: Jeffrey Ramirez Imagem: Jeffrey Ramirez

Agradeço ao Facebook ter conhecido a Marisa Paifer. Nunca nos vimos, ela não faz ideia de como são as minhas mãos. Sei algumas coisas sobre ela. É psicanalista. E, também, uma leitora aplicada dos meus textos e das postagens de outros escritores regulares que se arriscam no Face. Ultimamente, Marisa anda postando textos próprios (e bons). Fiz o pedido para que ela mandasse alguma coisa para a seção Convidados. Marisa Paifer enviou o bonito texto que segue:

Quando conheço alguém olho para as mãos. Não olho imediatamente, mas em algum momento o olho procura a mão. Ali naquele instante percebo se a pessoa seguirá em mim ou não. Acho cruel esse sentimento metido a onipotente de decidir quem segue em meu pensamento e quem não. Mas é mais forte do que eu, não posso controlar, acontece. As mãos representam o trabalho, um jeito de estar no mundo e de se relacionar com o outro. Entre tantas possibilidades.


Nasci num mundo sólido no qual a rua era o centro dos acontecimentos, o local de brincar e desbravar. Não dava trégua para meu irmão mais velho, espécie de porta-voz de um mundo pré-existente que me interessava. Ia prá escola a pé e em torno de uns 9, 10 anos de idade já tomava ônibus sozinha. Certa vez, ao redor dos 16 estava eu embevecida de olho num rapaz dentro do ônibus. Eu olhava prá ele e ele me olhava de volta. De súbito olhei suas mãos e notei que ele roía as unhas, havia uns tocos de unha, quase saltavam os ossos pele afora. Baixei os olhos, não voltei a olhar em sua direção.


Quando criança, achava curiosas as profissões que são dependentes de um fazer com as mãos. No caminho da escola tinha o livreiro com mãos finas segurando o livro ilustrado que tanto me seduzia; tinha o homem que vendia sagu na casquinha de sorvete; tinha o alfaiate com a fita métrica em torno do pescoço e os óculos na ponta do nariz, o giz achatado e aquela tesoura fascinante. Tinha o homem da loja de fazendas (que é como chamavam os tecidos) revirando as peças de tecido como um malabares; tinha o sapateiro sentado no banquinho baixo, perdido em meio a sapatos, bolsas, lascas de couro, cola e borracha, com mãos encardidas do trabalho rude. Havia as costureiras – um caso à parte, sempre ocupadíssimas, sem condições de pegar qualquer serviço antes da Páscoa. Sempre querendo alterar nossas decisões. E conseguindo.


Na minha infância havia muitas mãos. Minha avó retirando a água do poço, envolvendo os cabelos com o eterno lenço, cortando batatinha miúda e me dizendo que naquela lata estampada de bolachas não havia bolacha dentro e sim arroz cru. Meu avô dando corda no carrilhão que ele deu a minha avó quando minha tia fez um ano em 1955, ou enrolando o fumo no cigarro de palha ou avivando as brasas dentro da bacia que em noite fria, no meio da sala de estar aquecia a família. Minha mãe e minha avó costuravam. Minha mãe fez o próprio vestido de noiva. Eu, de tola rebelde nunca quis aprender. Perdi. É um ofício belíssimo. Belo como cozinhar. Transformar o estado das coisas numa outra coisa.

Há pouco tempo, estava vendo um programa na tv. A entrevistadora foi à casa de uma atriz cujo nome não lembro. A certa altura a moça falou que seu hobby era costurar. Mostrou e vestiu roupas de sua própria criação. Em dado momento foi à máquina e produziu alguma coisa ligeira. Enquanto as mãos dela pegavam o tecido e o conduzia com segurança sob a agulha eu me debulhava em lágrimas que insistiam em cair, assim repentinamente, contra minha vontade. Ali bem em frente à tv. Tá aí um bom assunto prá eu levar na minha análise.

https://www.facebook.com/marisa.paifer?fref=ts


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