Precisamos falar sobre Auschwitz

Primo Levi, químico, e Leonardo De Benedetti, médico, sobreviveram por acaso a Auschwitz. Tornaram-se escritores para narrar os horrores vividos na pele e alma Assim foi…

Capa: Hannibal Hanshke Capa: Hannibal Hanshke

Primo Levi, químico, e Leonardo De Benedetti, médico, sobreviveram por acaso a Auschwitz. Tornaram-se escritores para narrar os horrores vividos na pele e alma

Assim foi Auschwitz traz coletânea de relatos, notas, cartas, pequenos textos escritos por Primo Levi e Leonardo De Benedetti, cobrindo o período de 1945 a 1986. O primeiro autor quase dispensa apresentação, pois seu É isto um homem? (Rocco, 2013), publicado originalmente em 1946, segue conquistando admiradores mundo afora. Já De Benedetti escreveu de forma esparsa, e um dos trunfos de Assim foi Auschwitz é justamente apresentá-lo aos leitores.

Ao primeiro folhear, o livro – organizado Fabio Levi e Domenico Scarpa – causa certa estranheza. A começar pelo texto inicial “Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz (Auschwitz – Alta Silésia)”, encomendado pelo Exército Vermelho após a libertação dos sobreviventes da fábrica de mortos. No relatório, De Benedetti e Levi optaram por descrição impessoal e fria. Falam de horrores sem demonstrar juízos de emoção. Listam doenças, citam a total falta de medicamentos, a brutalidade no tratamento dos enfermos, a fome, a seleção dos doentes “incuráveis” para a morte nas câmaras de gás.

Na sequência ao relatório entram depoimentos, testemunhos, reflexões que os autores foram elaborando pela vida. O ponto de partida que os uniu não poderia ser mais macabro: a experiência no Complexo de Auschwitz, na Polônia ocupada.

Passadas décadas do fim da II Guerra Mundial, alguns podem pensar que sabem tudo sobre nazismo, judeus, trens abarrotados de vítimas, câmaras de gás, fornos crematórios. O material para acessar a memória do período é fartíssimo. Mas na medida que avançamos no livro comprovamos que nunca saberemos tudo sobre campos de concentração nazistas. Mais importante ainda: só é possível se aproximar da história e da verdade dos fatos lendo ou ouvindo quem passou pela experiência.

Levi (1919-1987) nasceu em Turim, Itália. Formado em química, aos 24 anos se juntou à Resistência. Denunciados por um espião infiltrado, ele e seus companheiros foram presos e enviados para o campo de Fossoli, perto de Módena. Até que em fevereiro de 1944 veio a deportação. Ele escreve: Transportaram-nos em vagões de gado nos quais estava escrito Auschwitz, nome que não nos dizia absolutamente nada naquele momento. A viagem durou três dias e meio (…) Éramos 650 judeus. Cada vagão lacrado levava de 45 a 60 pessoas.

De Benedetti (1898-1983), também judeu e turinense, foi deportado no mesmo trem para Auschwitz. Tinha 46 anos e era médico. Profissão que o salvaria da morte. Na enfermaria do campo, os doentes passavam por seleção feita pessoalmente pelo doutor Josef Mengele, – no futuro apelidado de “anjo da morte”. Os que evidentemente não apresentavam forças para retornar ao trabalho eram despachados para as câmaras de gás. Leonardo esteve na seleção. Porém ao declarar a profissão de médico foi poupado da morte, mas não do sofrimento de ter perdido sua mulher logo que desembarcaram na estação do inferno.

A chegada a Auschwitz é contada exaustivamente pelos dois sobreviventes. Depois da viagem de dias em vagões lacrados, exaustos, famintos, embriagados de sede, os anfitriões punham todos em filas ali mesmo na plataforma. Fila 1: homens jovens que aparentavam força para o trabalho. Fila 2: mulheres jovens que aparentavam força para o trabalho. Fila 3: crianças, velhos, deficientes e adultos alquebrados. Os integrantes das filas 1e 2 se tornavam escravos; os da fila 3 eram exterminados.

Levi descreve o campo de Monowitz como fábrica interrupta de trabalho escravo e de humilhações. A “desumanização” é rápida. Expostos ao frio, as rações diminutas, à sujeira, aos piolhos, a doenças de pele, a infecções, à dominação sem sentido, os prisioneiros viravam lobos esqueléticos uns dos outros. O autor recorda: Mesmo a fraternidade e a solidariedade, a última força e esperança dos oprimidos, desaparecem nos campos de concentração. É uma luta de todos contra todos: o primeiro inimigo é seu vizinho, que cobiça seu pão e seus sapatos, cuja mera presença lhe rouba um palmo de catre.

Horrorizando o próprio horror, pairava a certeza da morte iminente. Nos campos de concentração a sobrevida era questão de dias ou, com alguma sorte, de meses. O agarrar-se a fiapos de sobrevivência era bem mais uma resposta biológica (nosso corpo não quer morrer) do que qualquer esperança ou fé. Daí De Benedetti não esboçar pavor ao ser convocado à seleção de Mengele, a partir da qual os chamados “viajantes” – tuberculosos, maláricos, sifilíticos – eram transportados para as câmaras de gás.

Lendo os relatos reunidos em Assim foi Auschwitz vamos intuindo o drama dos que sobreviveram. A pergunta Por que eu sobrevivi em meio a 6 milhões de judeus mortos não é retórica. Pois todos nos campos de concentração nazista – salvo exceção de judeus que optaram por colaborar, tornando-se simulacros de capatazes – estavam marcados para a morte nua e indigna. Dessa maneira, ao menos para o sobrevivente Levi, contar e recontar o ano em que experimentou o “a banalidade do mal” virou a sua “razão de viver”.

Ele não deixou escapar nenhuma ocasião. Em 1959 ao receber a carta da filha de um pai fascista querendo saber a verdade, ele respondeu que os horrores dos campos aconteceram no coração dessa nossa Europa. Incrível que quatorze anos depois do final da guerra ainda houvesse quem duvidasse das mortes nos campos de concentração. Isso já havia acontecido com mais força quando Levi e De Benedetti voltaram à Itália. Muita gente não queria ouvi-los. Tapavam ouvidos e consciência para a magnitude do Holocausto.

Contar com detalhes, listar nomes de italianos que embarcaram no trem rumo ao campo, explicitar cenas dantescas se tornaram a obsessão de Levi. Agarrar-se à verdade dos fatos foi a forma de homenagear toda a gente tragada pelo genocídio. Em várias passagens, o químico Levi narra e reitera a informação sobre o tipo de gás usado nas câmaras. Tratava-se do Zyklon B – veneno grosseiro para exterminar ratos. Matar humanos do mesmo jeito como se matam ratos foi fel sobre fel na vida de Levi.

O autor aponta para o processo de desumanização do humano. Tanto dos algozes, quanto das vítimas. Não os iguala é claro. Os algozes tinham escolha, suas vítimas não. Mas isso não impede que Levi se espante com aqueles que são indiferentes aos seus semelhantes. Manter seres humanos sob fome, frio, sujeira, esforços árduos é algo que Levi enxerga como política nazista de matar antes mesmo de matar.

Quase um ano depois de terem desembarcado em Auschwitz, o campo foi evacuado. Mais de 150 mil prisioneiros – os ainda capazes de andar – foram obrigados a caminhar na neve por centenas de quilômetros, sete dias e sete noites. O destino eram os campos de Mauthausen, Buchenwald e Dachau. Mas a imensa maioria nunca chegou. Ou sucumbiu à fome e frio intensos, ou foi abatida pelos soldados alemães. Este sabiam que haviam perdido a guerra!

Nesse momento dramático, Levi e De Benedetti foram “esquecidos” na enfermaria do campo. Levi conta: Nós, os doentes, ficamos dez dias abandonados a nós mesmos, sem comida e sem atendimento, nos barracões demolidos. Quando os russos chegaram, em 27 de janeiro de 1945, mais da metade [dos doentes] tinha morrido de fome ou de doença.

A roleta do acaso funcionou favoravelmente para De Benedetti e Levi. Libertados pelo Exército Vermelho, eles fariam tortuosa e acidentada viagem de volta à Itália. Cada um a seu jeito, ritmo, oportunidade passaria a contar a experiência da quase-morte. Mas também o trabalho incessante de falar ao mundo sobre os exterminados. Não apenas para arrancar as vítimas do anonimato, mas pela certeza íntima e histórica de que ignorância dos fatos pode fazer que eles se repitam.

Na última parte de Assim foi Auschwitz há detalhes da publicação e de como os textos da coletânea foram “descobertos” e organizados. Tudo devidamente comprovado no capítulo “Notas sobre os textos”. Também traz proveitosas reflexões dos organizadores sobre a memória e suas narrativas.

ASSIM FOI AUSCHWITZ – TESTEMUNHOS 1945-1986
Autores Primo Levi e Leonardo De Benedetti
Organização Fabio Levi e Domenico Scarpa
Tradução Federico Carotti
Editora Companhia das Letras
Ano 2015
Páginas 280


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Uma resposta para “Precisamos falar sobre Auschwitz”

  1. […] da democracia racial é que ela impõe o silêncio. Como bem disse Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz, Nobel da Paz do ano de 1986: O carrasco mata duas vezes –  a segunda pelo […]

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