O Olho em Machupicchu

Vertigem

Foto: Martin Chambi Foto: Martin Chambi

Machupicchu me joga na alma de fogo o estarrecimento, o que aconteceu aqui? Silêncio é o ruído que ouço, um buraco na história, êxtase em estase. Se a memória estivesse presente faria um banquete, pinta um piscapista nesse novelo de rã, pasmo ante tanta beleza e nudez, o filme vela na Roliflex, Machupicchu não se deixa fotografar é pura alma.

A última vez sensação é como se, eu flutuo na garganta aberta em direção ao céu dos Andes, do fundo da terra o binário ruído escuto, forte como máquina é o coração Inca rangendo. Voa uma lã de lhama bem rente ao meu nariz, espirro, os turistas se aglomeram ao redor do Torontoy: quarenta ângulos de uma pedra espiam quarenta olhos, orquídeas de fevereiro loucas. Na montanha velha o tempo invisível coqueteia os abismos.

Estendo a mão o dedo indicador toca o tecido infinito, não pesa quase, ruínas formam a clara do ovo a gema o miolo de um desconcerto denso, para onde olho imagino: quem povoou escadas templos labirintos, vida, uma noite de sol em Machupicchu. Cócegas cósmicas, quem vem lá? O silêncio déspota do pedaço.

Num amanhecer de julho de 1911 o senhor Hiran Binghan – historiador norte-americano –  guiado por um garoto índio redescobriu Machupicchu, a cidade perdida dos Incas se encontrava então coberta por matas e serpentes. Hiran entre emocionado e excitado perguntou à pedra: Qual a razão desse mistério? Mas uma pedra não fala, sua fortaleza está na justamente na mudez taticamente absoluta.

São sete da manhã, estou no trem dos índios deixando a estação San Pedro em Cuzco, indo para a estação Puentes Ruínas aos pés de Machupicchu. A janela do trem é a cortina aberta da minha retina, o passaporte a mochila abarrotada de leites condensados e laranjas limas.

Os trilhos correm paralelos ao rio Urubamba enxurrando a sobriedade andina à alegre Amazônia, travestindo lhamas em papagaios, viajando nas caçarolas do delírio movidas ao fogo do sol, o pintor das paisagens.

Molhada pelas tintas de impressões digitais invisíveis gravadas concretamente no granito que desafiando o tempo mantém erguidas as ruínas da cidadela, começo a descida da montanha ao vale, sou a mesma que subiu apenas literalmente diferente, meus pés aceleram à medida que o pensamento quase encostando o vazio estrutura uma rota ao revés de todo objetivo.

De repente traio a emoção racionalizo, Machupicchu como metáfora da terra dizimada pela guerra total, ostentando a assustadora presença da ausência de moradores, a montanha velha suicidada por forças obscuras, ficção de uma realidade tantã.

Você não pode imaginar a textura do vento que atrita a minha pele, mas talvez você possa, lançando mão de algumas metáforas modernas, interpretar como se sente uma brasileira percorrendo a trilha cerzida pelos Incas. Espaço onde uma percepção inédita me invade, no ar o sol a pino é o sax dessa orquestra que a natureza rege, eu quem sou? A cantora da ópera.

no alto a anfitriã tudo vê, vestida com roupas de pedras xales de séculos, na garganta bem engolido o véu da memória, seu nome é Machupicchu. Estou quase de gatinhas um graveto rasga meu casaco de náilon, a vertigem da altura se miscigena a outras inclassificáveis. Meus olhos para baixo percebem o rio Urubamba tal qual o risco numa tela louca.

Olho o que cheiras? jasmins de mais de trezentos tipos de orquídeas. Ouvido que gosto há? o do mel das Índias no fel dos espanhóis. Paladar o que vês? o sol dentro da noite. Nariz qual a textura? a fina espessura da memória na superfície do granito. Tato que ouves? o sexto sentido.

Eu cheiro o mar mas aqui não há mar, vejo o povo na praça mas aqui não há povo, ouço Beny Moré mas o som da rádio machupicchu é o rock do silêncio. Vejo a Europa cobiçando o ovo do quetzal. O segredo ficou invisível como são invisíveis as flores nos agostos de Hiroshima. Acendo um fuminho fininho vigio não há guardas nem antropólogos, o templo de La Luna é meu sol.

Você sabe do meu pavor às multidões nunca estou lado a lado com as massas, o deserto humano me é absolutamente propício, na bruma dos chumascos urbanos ficam faltando os pontos de ônibus os quiosques as leis. Uma cidade sem sociedade a linguagem do granito, empatia selvática, os maus espíritos estão em Nós.

Circulando pelas contas de um colar gigante a memória, sentindo no lado esquerdo do peito a posse de um passaporte vitalício para as delícias, deito na grama ao lado de uma lhama com a alma calma, cerro as cortinas da retina vejo o espectro de Mona Lisa penetrando na casa de Los Guardianes, múmias faraônicas descendo escalatinas chapinhas de coca-cola subindo Waynapicchu.

Vejo a história precipitando-se no abismo, a cor do Aleph, descubro as pestanas. Eis minha aldeia, Machupicchu anos escondida de mim mesma. Do rocambole universal da cultura corto uma rodela particular: a tradição pré-colombiana, recebo a visita de uma alegria. Se as intervenções no presente são quase nulas ao menos posso eleger meu passado, a parte que me cabe na vasta antena da espécie.

Vocês verão o outono atirando primaveras nos invernos públicos, a imagem e semelhança das sombras nas pedras aludem a que nossas construções devam ser terra, água, ar, fogo. De naus embriagadas ecoam vértebras flautas desde a Amazônia, o outro olho da coisa, cercada por hilariantes berros do silêncio, a crítica radical do olho que congela o que vê, aroma de orquídea, assombra a vitória da memória pelo Olho.

Ela embarca na Luz, os trilhos atravessando brumas chaminés e cafés paulistas, no pantanal o mergulho do sol no olho do jacaré a conversa afiada dos pássaros, o trem estanca uma avestruz acena para ela, bom presságio.

Súbito as formas no deserto: tufos de pó uma árvore anã, pequenas luzes de pequenas casas de pequenos índios emoção gigante, a lentidão da locomotiva dentro do tempo voraz a excita com paisagens inéditas, ela assassina a sede com limões, joga o olhar à esquerda, susto, uma montanha de neves eternas escorre a cal gelada pelos troncos do bosque, na beira do precipício elegantes lhamas passam, cruzam o céu, aves.

Ela escreve num guardanapo beleza não mata. O trem segue devorando pegadas que os trilhos desenham, a noite veste as malhas do frio ela não dorme, suas mãos sonâmbulas vão dissipando o gelo da alma, no breu as formas são fantasminhas travessos burilando as alturas, tateia no bolso da calça os dólares congelados.

Uma longa gargalhada ecoa no despertar da alba, de repente o sol ressuscita para seus olhos vastas planícies, rostos de índias refletidas nos espelhos das águas, curvas do rio pronunciam seu destino como um labirinto que vale a pena ser percorrido, o preço da vida é o delírio.

Dribla a fome com ovos cozinhados vendidos por um menino que ela adivinha ser tataraneto de um inca. A locomotiva como uma centopeia com cólicas vai, lá embaixo aparece Cuzco inteira verde e barro, é um bom dia duas galinhas carijós fofocam a vida alheia. Ah! se o trem parasse cinco minutos em cada estação, a beleza faria um banquete.

Ao seu lado corre a alegria ruidosa do Urubamba ela sabe ele deságua sua agitação no rio Amazonas. Então tudo termina no mar. Estação Puentes Ruínas, ela pula do trem, vê a viagem, começa a subir farejando como um animalzinho curioso, Machupicchu.

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