No meio do caminho, a guerra

Na casa do litoral, em noite de rajadas de vento e estrondo de ondas quebrando nas pedras, a luz escafedeu-se. Só estávamos eu e minha avó…

Na casa do litoral, em noite de rajadas de vento e estrondo de ondas quebrando nas pedras, a luz escafedeu-se. Só estávamos eu e minha avó Hercília. Sem televisão, sem rádio, sem internet,  passei a caçar o que fazer para disfarçar o desconcerto da vida sem tomadas, interruptores, modems, roteadores, filtros de linha, estabilizadores.

De repente, lembrei da última aula de história quando o professor Osíris afirmou que, antes de qualquer forma de iluminação artificial, depois do pôr-do-sol, as pessoas se reuniam em volta de uma fogueira para contar e ouvir histórias. Fazia semanas que uma pergunta rondava minha cabeça. Era uma questão que gostaria de formular às pessoas mais velhas:

− Vó Hercília, se pudesse voltar no tempo, o que você consertaria? O que você faria ao contrário do que fez?

Para minha surpresa, ela não vacilou. Respondeu como se o conteúdo estivesse na ponta da língua, tão-somente esperando por esta pergunta. 
− Eu teria avisado minha amiga Maria que sua casa seria invadida.

Dita a frase, vó Hercília se calou. Temi que não continuasse. Mordida pela curiosidade, gritei:

− Conta logo, vó!
− Eu tinha quinze anos e Maria Pecci quatorze. O povo em volta nos apelidou de as inseparáveis. Não havia segredo meu que ela não soubesse, não tinha segredo dela que eu desconhecesse. Minha mãe, sua bisavó, dizia: Quer encontrar a Hercília? Descubra onde está a Maria. Até os meninos da nossa rua tinham ciúmes da gente. Seu avó Haroldo, que nesta época eu nem notava, dizia que Maria e eu namorávamos. Era um grude. Nós duas juramos que acontecesse o que acontecesse jamais nos separaríamos. 
− Que época era essa, vó?
− 1942, o ano que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial. Ninguém poderia imaginar que um conflito tão longínquo de Sergipe pudesse destruir uma amizade linda como a nossa.

Dito isto, Vó Hercília se calou. Deu aquela piscadela que as pessoas velhas dão, quando picadas pelo aedes aegpti de antigas memórias. Eu estava cada vez mais curiosa.
− Continua, vó! Você ainda não respondeu a minha pergunta…
− Não seja afoita, Ana Luísa. A história que eu vivi é tão triste que sua recordação é dolorosa. Mas talvez me faça bem pôr as emoções para fora. Acho que nunca contei para ninguém o que aconteceu, na minha intimidade, naquele fatídico agosto de 1942. 
− Nem para minha mãe?
 − Não contei para filho nenhum. Aliás, nem para o seu avô. Antes de continuar vamos acender mais uma vela. Não quero contar nada no escuro. Esta história viveu, por décadas, no breu.

havíamos acendido velas na sala, no banheiro, no hall de entrada e na cozinha, onde estávamos. Vó Hercília reforçou a luz, pondo uma vela gorda no centro da mesa. Ficou uma iluminação meio fantasmagórica, o rosto da narradora era meio sombra, meio clarão. Agora eu não ouvia nem o zumbido do vento nem o estrondo das ondas. Minha concentração estava com a minha avó.

− O fim da amizade com a Maria começou na noite em que meu pai, tenente da marinha, entrou esbaforido em casa contando que submarinos alemães haviam torpedeado navios brasileiros, próximos da barra de Aracaju. Parece que resultara em centenas de mortos. Enquanto falava e arfava, meu pai se vestia e enchia a mochila com comida e algumas roupas. Estava de partida, tinha sido convocado para integrar a equipe de recolhimento de corpos e destroços.

− Deixe eu entender: o Brasil estava em guerra com os nazistas?

− Entraria depois dos naufrágios. Foi uma pressão popular tremenda. Não só em Sergipe. O país inteiro ficou traumatizado com as mortes. O presidente Getúlio Vargas não teve saída: declarou guerra ao III Reich e à Itália de Mussolini.

− Mas onde entram você e a Maria nessa confusão toda?

− Calma. Você já vai entender. Quando o povo de Aracaju soube dos ataques e das mortes se revoltou. Parecia que um furor de indignação tinha soprado do oceano, tomando conta da cidade. O clamor era por vingança. Havia que lavar o sangue dos compatriotas vitimados: mulheres, crianças, jovens, velhos. Marinheiros e passageiros.

− Ninguém sobreviveu?

− Poucos. Teve quem passou dias no mar até dar a cara para a salvação. Mas a maioria morreu afogada. No espaço de dois dias, cinco navios foram a pique. Até hoje sei de cor o nome de cada um: Baependi; Araraquara; Anibal Benévolo; Itagiba, Arará.

− Dona Hercília, que memória!

− Uma semana depois dos ataques, seu bisavô nos levou para conferir o horror em uma das praias. O que vi, nunca apaguei: dezenas de corpos espalhados pela areia. Estavam inchados, com ventres enormes, pareciam grávidas e grávidos feitos de cera. Alguns tinham algas e moluscos enfiados na boca, nos olhos, nas orelhas. Todos seminus. Mas o pior era o insuportável cheiro da morte coletiva.

Minha avó fez uma longa pausa. Quando formulei a pergunta acerca do arrependimento, acreditava que a história que ela me contaria seria banal, tipo: me arrependo de não ter beijado o seu avô no primeiro dia que saímos, se voltasse no tempo nos beijaríamos. Eu estava surpreendida. O que Vó Hercília contava era, também, um pedacinho da história do Brasil. Sensibilizada, não pus pressa. Passado um minuto, ela retomou a narrativa:

− Com essa loucura acontecendo na cidade, com as aulas suspensas, os ânimos pegando fogo, eu e Maria não nos encontrávamos. Um milagre, dizia minha mãe. Foi então que ouvi, por acaso, meu irmão Jaime – estudante secundarista – confabulando com uma turma de colegas. Reuniram-se no quintal lá de casa, saboreando mangas tiradas do pé, disparando discursos inflamados. Muita patriotada.

− A favor do Brasil entrar na guerra, né?

− Também. Mas não apenas isso. Eles estavam planejando atacar as casas de italianos e alemães moradores de Aracaju.

− Italianos? Mas não foram submarinos alemães que bombardearam os navios brasileiros?

− Ocorre que Itália, Japão e Alemanha eram cúmplices, aliados de guerra. Formavam o chamado “Países do Eixo”. Eles representavam o nazi-facismo.

− Hum. Então a bronca sobrou para os italianos de Aracaju.

−  Exatamente. O pai de Maria era o Enzo Pecci, italianíssimo. Todo mundo o conhecida, era dono de um armazém de secos e molhados. Mas nunca aparecia no trabalho. Quem levava o negócio da família era o Guido, irmão mais velho da minha amiga.

− O pai ficava em casa fazendo o quê?

− Falando no rádio sem parar. Seu Enzo tinha um radiotransmissor. Era câmbio para cá, câmbio para lá. Ele ficava tão entretido que nunca se dava conta que eu vivia enfurnada em sua casa. Quando me percebia, perguntava para a Maria: quem é esta regazza tão bonita?

− Ele teve alguma ligação com os ataques?

− Eu acho que nenhuma, mas ser radioamador foi a desgraça dele. Desconfiaram que ele teria passado informações sobre a rota dos navios para os alemães. Mas nunca provaram nada.

− Ele foi preso?

− Formalmente não havia acusação. O fato é que meu irmão Jaime e mais uns trinta estudantes invadiram a casa do italiano. Destruíram tudo: o rádio transmissor, os móveis, a cristaleira. Com uma tesoura, eles picaram toda a roupa da Maria. Detalhes assim, seu tio-avô Jaime, bastante envergonhado, me contou muitos anos depois.

Talvez por armação do destino, neste exato momento da narrativa, a luz voltou. Espalhafatosa, invadiu os cômodos da casa. Dava a impressão que um palito de fósforo gigante tinha sido aceso. Vó Hercília fez menção de se levantar.

− Vó, como é que termina a história? O que aconteceu com sua amiga Maria?

− No dia seguinte à invasão, a família Pecci fugiu de Aracaju. Sumiram só com a roupa do corpo. Deixaram a casa e o armazém para trás. Tenho certeza que sentiram muito medo. Terminada a Guerra, em 1945, eu tinha esperança que eles voltassem. Nem sombra.

− Quer dizer que você nunca mais soube da amiga inseparável?

− Até hoje, eu não sei nada da Maria.

Minha avó calou-se. Era evidente que ela dava por encerrada a história. Hora de mudarmos de assunto. Peguei o controle remoto.

– Vamos pôr na novela, vó?

− Vamos. Mas antes deixe eu responder sua pergunta. Se eu pudesse voltar no tempo, como o Super-Homem fez no filme, ao ouvir o plano de invasão de Jaime e seus colegas teria corrido à casa de Maria. Certamente teria avisado da violência iminente.

− Por que você não fez?

− Como todos, eu estava embriagada de intolerância. Naquele momento, acreditava que bastava ser italiano, alemão ou japonês para ser inimigo. A doce Maria, de uma noite para uma manhã, se transformou na filha de um monstro nazista.

− Que pena, vó.

− Pena mesmo. Perdi a amiga que nunca esqueci.

 


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Uma resposta para “No meio do caminho, a guerra”

  1. […] também que parte do estereótipo contra os alemães vem da Segunda Grande Guerra (1939-1945). Eles foram os nazistas da História. Barbarizaram. No fim, perderam a guerra e arcaram […]

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