O 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea, faz 129 anos, mas o racismo continua insistente e recorrente no Brasil. Para nos iluminarmos um pouco, tirei da gaveta uma entrevista realizada em 2006. Apesar da passagem do tempo, sua essência segue atual.
O antropólogo Kabengele Munanga, nasceu no Congo, no ano de 1942. Ganhador de uma bolsa de estudos em 1975, veio ao Brasil fazer seu doutorado na Universidade de São Paulo – USP. Terminada a defesa, voltou ao seu país. Mas a periclitante situação política o obrigou a deixar a terra natal definitivamente. Foi assim que, no ano de 1978, o Brasil ganhou um sofisticado intelectual e a comunidade acadêmica um pesquisador das questões da população negra. Dono de uma gentileza e de um sorriso encantadores, Kabengele Munanga discorre abaixo sobre democracia racial, branqueamento, negritude e sistema de cotas. Falou com generosidade em uma tarde gelada de outono.
Democracia racial, ideal ou máscara?
Por muito tempo, o Brasil foi conhecido como o país da democracia racial. Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, no ano de 1945, a Unesco patrocinou uma pesquisa para averiguar se realmente o Brasil era uma democracia racial. Caso fosse, poderia servir de modelo para o mundo.
A conclusão, depois dos estudos desenvolvidos na Universidade de São Paulo (USP), foi a de que não havia democracia racial nenhuma. Ficou evidente que o que existia era o mito da democracia racial. A pesquisa demonstrou que os negros brasileiros encontravam barreiras no caminho de sua ascensão social. Demonstrou que essas barreiras não tinham nada a ver com a questão econômica. Elas foram erguidas para brecar o desenvolvimento e a ascensão da população negra brasileira.
Bem antes da pesquisa da Unesco, a Frente Negra Brasileira – criada, na década de 1930, em São Paulo – já havia denunciado o mito da democracia racial. Os negros não ingressavam na faculdade e tinham dificuldade em entrar no mercado formal de trabalho. Mas, como era negro falando de negro, isto é, vítimas falando de vítimas, a repercussão da denúncia foi minúscula.
Mas a partir do momento em que a USP e a Unesco falaram, pelo menos, os intelectuais passaram a prestar mais atenção nas questões raciais. O Brasil olhava-se no espelho, comparava-se aos Estados Unidos e à África do Sul, e achava que a sua imagem era perfeita. Acusava os sul-africanos de racistas por conta do Apartheid. Acusava os Estados Unidos de serem um país dividido com a segregação racial: banheiro para brancos e banheiros para negros.
Já o Brasil não tinha leis segregacionistas. Mas a chamada democracia racial serviu, justamente, para mascarar os problemas da sociedade. O discurso dominante diz: Somos mestiços. Ou seja, não há pretos, nem brancos, nem índios. Todo mundo é misturado. Não há referenciais para definirmos superioridade e inferioridade. Por baixo de todo este discurso, os negros seguiam e seguem sendo discriminados.
Minha tendência é interpretar a democracia racial mais como máscara do que como ideal. Se fosse um ideal, viria acompanhado de ações e políticas públicas concretas para integrar os negros na sociedade, para possibilitar oportunidades reais. Outra circunstância agravante da democracia racial é que ela impõe o silêncio. Como bem disse Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz, Nobel da Paz do ano de 1986: O carrasco mata duas vezes – a segunda pelo silêncio.
O racismo mata quando discrimina, e mata, pela segunda vez, porque prejudica a conscientização tanto das vítimas quando dos discriminadores em torno das relações raciais. Para os americanos, o racismo não é segredo, eles assumem. Por conta disso até conseguiram promover leis contra a segregação racial e implementar políticas de ação afirmativa.
Para os brasileiros, uma das maiores dificuldades é a confissão de que são racistas. Muitos brancos afirmam que não há racismo, mas sim uma questão social. Mas afinal o que é social? Tudo é social.
Branqueamento
A beleza é a do branco com seu cabelo liso. Para este referencial, o cabelo do negro é ruim. Daí, muita gente querer fugir da negritude – que é símbolo de inferioridade. Para o IBGE, as pessoas se autodeclaram: moreno, jambo, castanho, canela, cor-de-cravo, branco sujo, encardido etc. Foram mencionadas mais de cento e trinta cores.
Tudo isso para fugir das palavras preto e negro. Claro que as pessoas sabem que não são brancas, mas elas têm de fugir da negritude para se aproximar cada vez mais da brancura ideal. Isso faz parte do processo de branqueamento, que é toda uma ideologia.
Quando o Brasil se tornou independente de Portugal (a partir do ano de 1822), a primeira questão que a elite quis saber foi Como construir a sua identidade com tantas misturas: índio, negro, branco? Acharam que o caminho era branquear o povo. Começaram a defender a mestiçagem.
Só que, sabemos, a mestiçagem é também um atalho para o branqueamento. Na cabeça dos ideólogos do branqueamento, o brasileiro chegaria a ter uma raça, mestiça na origem, branca na aparência.
Negritude
Em contrapartida, o processo de construção da identidade de um descendente de africano tem de passar pela cor da pele. Se o negro brasileiro não assumir a cor de sua pele, estará negando sua própria humanidade. Esta identidade também tem de passar pela cultura e pela história da população negra. Assim, a negritude se torna indispensável para a construção de uma identidade.
Uma pessoa mestiça necessita assumir a sua negritude, porque quando ela sofre discriminação é por conta do sangue negro que carrega, não é por conta do sangue branco que também carrega. Quando há uma competição acirrada entre a pessoa mestiça e a pessoa branca, a mestiça deixa de ser mestiça para ser simplesmente tratada como “negrinha metida” ou “negrinho insolente”. Nestas situações, a brancura do mestiço acaba imediatamente.
A negritude também é um elemento de luta e de combate. É um postura política. Trata-se de uma ideologia de combate ao racismo. Enquanto existir uma única pessoa, homem ou mulher, discriminada por causa da cor da pele, a negritude fará sentido como reafirmação do orgulho e de autodeterminação. Pessoas negras, em todo o mundo, dizem que é um fardo abrir caminho em sociedades racistas. Também atestam ser a negritude uma espécie de antídoto para as discriminações.
Simplesmente cotas
A Índia foi o primeiro país a implementar a política de cotas. No ano de 1950, três anos depois da independência, o país institucionalizou as cotas para minimizar a dura discriminação contra os chamados intocáveis. Numa sociedade de castas, há os sacerdotes, os guerreiros, os comerciantes, os cultivadores, os servidores, e os que não são classificados, os que não são nada, ou seja, os intocáveis.
Antes das cotas, eles não podiam estudar em escolas públicas, nem trabalhar em repartições, nem ter representantes políticos. Estavam completamente segregados, sem nenhuma chance de mobilidade. Para eles eram destinadas as tarefas impuras: cremação dos mortos, limpeza de esgotos etc. Com a política de cotas, garantiu-se 15% de vagas nas universidades para a casta dos intocáveis, no congresso, no serviço público. Se não preencher, fica vazio.
Depois Malásia e Estados Unidos aplicaram cotas como políticas afirmativas. Mas tenhamos clareza: cota não é combate ao racismo, cota é uma ação pragmática para a redução da desigualdade social.
No caso brasileiro, cotas podem significar a redução da desigualdade entre brancos e negros. Elas pretendem ajudar no estreitamento do fosso que separa brancos e negros no tocante à educação e às oportunidades de trabalho.
Cotas brasileiras
Se houvesse mágica e uma fadinha agitasse sua varinha de condão tornando boas as escolas públicas, os negros levariam de 20 a 30 anos para competir, em condições de igualdade, com os brancos. Bom, fadas não existem. O jeito é criar políticas concretas para minimizar estas desigualdades.
Cotas na universidade têm efeitos rápidos. Em quatro anos, aparecem os resultados. Em quatro anos, teremos uma geração de jovens que, sem as cotas, não teriam a possibilidade da formação.
Os que são contra as cotas dizem que as aceitar é reconhecer a existência de raças no Brasil, é racializar a sociedade, é inventar o racismo. Ora, as pessoas que estão lutando pelas cotas lutam para corrigir os efeitos da discriminação racial.
Aliás, o racismo é uma ideologia que não precisa da palavra raça para seguir ativo. Podemos parar de falar em raças e seguir praticando racismo. Na África do Sul, em nome do Apartheid, criou-se um regime de segregação racial sem mencionar a palavra raça e racismo.
Apartheid em africans, que é uma das línguas oficiais da África do Sul, significa: desenvolvimento separado, respeitando as diversidades culturais dos povos sul-africanos. Hoje, a Europa não fala em raça nem em racismo, quando discrimina árabes e africanos. Fala-se em diferenças culturais, em choque de civilizações.
O brasileiro pode e deve construir sua identidade a partir da diversidade. Nossa identidade é plural. Temos contribuições das culturas indígena, japonesa, árabe, europeia, e, muitíssimo, da africana. O problema é que só uma delas, a europeia, está no poder. A cota não vai trazer conflitos de raça. Ela é uma ação para diminuir desigualdades raciais.
Há sentido falar em raça como construção sociológica, antropológica, como realidade política. Raça é uma categoria de dominação e exclusão. Os movimentos negros usam raça no sentido social e/ou político, pois apesar de a raça não existir biologicamente, a fenotopia e a cor da pele formam as aparências a partir das quais se constroem os preconceitos e, consequentemente, a discriminação. Quem sempre apontou a inferioridade da raça negra foram os brancos. Isto está escrito na memória oral e nos livros.
Um outro elemento que eu gostaria de sublinhar: o efeito multiplicador das cotas. Certamente, os filhos destes jovens que entram na universidade, pelo sistema de cotas, terão uma condição de vida melhor. Com certeza daqui 20 anos, a educação do negro, no Brasil, estará radicalmente superior ao que é hoje.
Ações afirmativas e o valor da educação
Ações afirmativas são políticas de intervenção concreta. Não são tão somente sinônimo de cotas. As cotas são políticas que trazem efeitos a curto prazo. Mas outras ações podem ser aplicadas.
Por exemplo, podemos entrar em uma empresa e observar: quantos negros, mulheres ou pessoas portadoras de deficiência trabalham lá. Podemos estipular: a empresa tem cinco anos para mudar o quadro de exclusão, para incluir. Caso não o faça, o governo não comprará nada desta empresa.
Agora, ações afirmativas são estímulos para a mobilidade social, não resolvem o racismo sozinhas. Há uma outra frente importante que é a educação. Educação não é apenas aprender a ler, a escrever. Não é apenas aprender uma profissão.
Educação é adquirir uma cultura cidadã, é aprender que democracia é conviver com a diversidade, é conviver com a diferença. Uma sólida educação forma cidadãos críticos. Se a pessoa aprendeu o racismo em casa, e está exposta a falas e atitudes não racistas na escola, ela vai ter argumentos e força para contestar o racismo da casa.
As leis são para punir as pessoas que não obedecem, mas elas não combatem os preconceitos introjetados nas cabeças. Preconceitos cristalizados são invisíveis. Para mudar o quadro de discriminação racial são necessários: leis, educação, políticas públicas e políticas de ação afirmativa.
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Brinde
maravilhosa entrevista com Kabengele.
Otacilio, o professor Kabengele é de uma clareza incrível.
Eu apenas posso dizer que vc é fundamental.
Otacilio, imagina! Abraço.
[…] que sair do seu conforto histórico da reiteração da democracia racial. A partir da discussão de cotas, do Estatuto da Igualdade Racial e que tais, foi instaurado um conglomerado midiático, um […]
[…] me ensinar a calcular o máximo e o mínimo múltiplo comum, me ofereceu as primeiras lições de racismo e, consequentemente, de […]