13 Ao mar

O barco Miraflores leva Cá Camila pela Guanabara

Capa: Cida Santos Capa: Cida Santos

Impressões, fata morgana, um pedaço de toco boiando. Às vezes: náufragos devolvidos à terra, o oceano não os sepulta. Um momento! Galga o ar o odor da maresia acasalado com o cheiro de cedro. Onde se meteu Cá Camila?

Ali, em ruela do cais, conversando com um barqueiro. Ele diz chamar-se Acab – apesar de jamais ter conhecido Moby Dick e nem faltar-lhe uma perna. Aluga barcos, mas somente para timoneiros profissionais. Nunca tratou de negócios com uma mulher. Se mostra receoso em alugar um barco a esta, sem dúvida, marinheira de primeiríssima viagem.

No entanto: não há mestre que não tenha sido aprendiz. Rosa que não tenha nascido broto. Morto que não tenha vivido e todo marinheiro experiente um dia não o foi. Raciocinando assim, Acab cede. Fecha negócio  com Cá Camila.

O barco que a navegará da vontade de partir à vitória de chegar traz, diagramado no casco, o nome Miraflores. Rubro-negro, a motor, com o leme da suavidade do morim. Um primor. Cá Camila se apaixona num piscar de gosto.

Toma os governos da proa e popa com determinação, chapéu lilás, tênis violeta e capa negra. Irá vagar nas vagas do imensurável mar e sonhar outras vigílias. Ela se desliga da terra que a ligou ao bosque, ao rio Maracanã, ao galpão de artesanias.

Sabe que para a viagem dar certo e o destino alcançar, precisa não voltar o olhar e ao futuro esperanças encomendar. Se os alísios e as marés corroborarem, será pilotando o Miraflores que o ancoradouro de Veridiana a receberá.

O porto ouve um grito daquela que parte. Ela não tem a quem acenar, a não ser ao Rio de Janeiro. Por seu pulso, firme no leme, escorrem lagrimazinhas. De seus olhos pingam parafinas derretendo o passado. Os cabelos abraçam o chapéu lilás, que quase decola. E se decolasse, se transformaria em grafite de adeus em algum muro da Cidade Maravilhosa.

Lá se vai Cá Camila perseguindo seu palpite, apostando tudo o que tem em um só número. Essa mulher vê as coisas como quer. Está em um pequeno barco a motor, entretanto se sente no castelo de proa de uma sobranceira nau.

O elegante Miraflores, em um contorno oleoso, singra sua primeira curva. As hélices do submerso motor engendram com as águas redemoinhos de espumas. Então conclui a curva dando a popa à cidade, oferecendo a proa à exuberante baía de Guanabara.

Baía, outrora, lagoa salgada e sagrada da gente de Arariboia – a cobra brava. Vezes cobiçada por Portugal, França e Holanda. Porta de saída do Império, porta de entrada de revoltas. Senhora de muitas ilhas. Pastagem para navios de todas as bandeiras. Se existiu um artista da natureza, certeza, ele teve um ateliê por aqui.

O exato relógio do sol crava na luz da tarde dezoito e trinta punhaladas. Sincrônicos, barcos vão trocando os olhos dos timoneiros pelo olhar das lanternas. Vista, nesse horário, a baía de Guanabara parece equilibrar na superfície das suas águas: um enorme vaga-lume.

O Miraflores assalta vagas em meio ao lusco-fusco, seu compasso nauta conota solavancos de euforia. Cruza com um petroleiro: a timidez e a hipérbole fazem sinais de confraternização. Em seguida navega paralelo ao Encouraçado Potemkin – há décadas fundeado na história.

O barco de Cá Camila, se alguém o observasse do cais veria mais e mais, ele se aproximar do inacessível arco do horizonte. Logo desaparecerá, confirmando a redondez da Terra. Em minutos passará da baía de Guanabara ao Oceano Atlântico. Trocará um temperamento até certo ponto controlável por uma personalidade imponderável.

As vagas estrelas do Cruzeiro do Sul orientam o Miraflores, que docemente se entrega ao mar aberto. Ainda é cedo para desejar um farol intermitente anunciando um ancoradouro possível. Seu destino e de sua comandante, tal qual uma persiana, se abrem deixando entrar o infinito.

Deguste outras fatias


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3 respostas para “13 Ao mar”

  1. Avatar regina disse:

    Enquanto o mar nos evoca a fantasia do que não nos é recorrente, as palavras de Fernanda sabem o que fazer. Ela comanda bem esse barco.

  2. […] Machado de Assis (1839-1908) viajou, no máximo, para Niterói. Ou seja, apenas atravessou a baía de Guanabara. Mas ele percebeu o país de forma aguda e ímpar como demonstram seus vários […]

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